Brecht em um dos seus últimos
textos insistia que “o mundo de hoje não pode ser descrito aos homens de hoje a
não ser que lhes seja apresentado como transformável” nesse sentido, podemos
dizer que para o autor alemão o mundo não cessa de se transformar e de nos
transformar. Brecht também dizia que triste era o mundo que precisava de
heróis. No entanto, talvez devêssemos pensar que algumas são as figuras, na
barbárie, que tornam suas vidas uma obra de resistência, um ato de coragem e
que em torno dela se agrupam, “como num cacho de uva”, um monte. E que nesse
agrupamento insurge contra uma lógica de mundo, contra um tempo sombrio.
Pressionando o mundo ali onde ele mais se conserva por meio dos mais diversos
dispositivos.
Uma dessas figuras me foi
apresentada hoje de forma poética; como um grande poema que nos atravessa e nos
lança para fora do trem em movimento. Possibilitando assim o fazer ver e sentir
fora do trilho do tempo e espaço, numa espécie de extemporaneidade. De certo
que tudo isso não é de forma alguma um ato fácil, apaziguado, mas um ato cruel
por nos rasgar e fazer vibrar aquilo que no nosso corpo a muito tinha sido e vem
sendo capturado e tornado organismo como diria outro gênio do teatro Antonin
Artaud. Retardando assim, percepções outras do mundo, da vida e, por
conseguinte, da instituição de um mundo outro, vida outra.
A figura a qual me refiro se
chamou Dom Helder. A Companhia responsável pela forma poética se chama CIA do
tijolo. O espetáculo: O Avesso do Claustro.
O teórico Bernard Dort no seu
livro “o teatro e a realidade” chama atenção para o fato de como “evocando o
mundo em que vivemos, o teatro estará à altura de propor a seus espectadores
imagens de nossa vida social suficientemente fortes para que possam, se não
concorrer com as que são fornecidas sem descanso pelas revistas, pelo cinema e
sobretudo pela televisão, ao menos proporcionar prazer e suscitar uma reflexão
totalmente diversa”. Parece-me está na poesia (não só com o gênero literário) a
produção dessas imagens. E me parece que a encenação da obra aqui em questão
proporciona tal prazer e suscita tais reflexões.
O palco se torna um grande canteiro
de obras. Onde tudo se torna ferramenta para materialização cênica. Onde o jogo
é vivo. Onde a teatralidade pede passagem e exige autonomia em relação ao
discurso, mas que por conta disso torna o discurso ainda mais potente, uma arma
cortante. A forma encontrada pelo CIA do Tijolo para encenar o legado de Dom
Helder permite-nos vivenciar a força que pode ser o teatro. Esse lugar
heterotópico como dizia Michel Foucault, ser o teatro; esse não lugar dentro do
lugar, mas que cria avessos, produzem outros tempos, imagens e que, por isso
mesmo, age, mesmo forma pequena, sobre a realidade, o mundo. Se num primeiro
momento não se enxerga os efeitos, eles passam imperceptíveis, em outro, isto
pode emergir com uma força até então inimagináveis.
Acompanhar a encenação do
espetáculo é perceber tempos e espaços conectando-se. Trajetórias se
encontrando, não no mesmo tempo e espaço da realidade, mas possível no tempo
espaço do teatro, fazendo com que se conceba plano de percepções. O que isso
quer dizer; que as trajetórias envolvidas, cruzadas pelo tempo mundo, podem de
alguma maneira gerar percepções comuns sobre o mundo na medida em que se
verificam atos de resistências, de combate à barbárie que surgem e se perpetua em
tempos e espaços os mais diferentes. O que nos faltam, muitos ativistas
acreditam, é uma percepção partilhada da situação, sem essa ligadura, os gestos
se apagam no nada e sem deixar vestígios.
Na peça a gente acompanha como
bem explicitado no seu programa, “a trajetória de três personagens cheios de
questionamentos e perplexidades diante de nosso momento histórico e atual. Três
figuras que perambulam pelo centro de três grandes cidades brasileiras: Um
pesquisador em visita ao recife, uma moradora que caminha pelas ruas da cidade
de São Paulo e uma cozinheira que vive aos pés do Cristo Redentor se encontram
para ouvir de novo a voz do Bispo Vermelho, ouvir seus poemas e histórias,
dialogar com ele, concordar com ele e por vezes questiona-lo”. E é no encontro
desses três e suas relações com Dom Helder, que verificamos a produção de uma
percepção partilhada da situação. A produção de uma inteligência partilhada, o
posicionamento de algumas peças, dentre elas, a de uma linguagem que exprime,
ao mesmo tempo, a condição que nos é apresentada e o possível que é a fissura.
No programa da peça a CIA
verificamos o seguinte trecho: “diante desse encontro inusitado no espaço e no
tempo, só possível no teatro, atores, personagens, palco e plateia buscam
reaprender a imaginar novos mundos possíveis em tempos obscuros”. Ou seja, o
teatro ao permitir tal encontro faz ver a possibilidade de se criar contra
informações à profusão cotidiana de informações, que molda nossa apreensão de
um mundo. Desse modo podemos retomar Foucault quando ele nos fala do teatro
como um contra-espaço, um espaço fomentador de corpos outros, subjetividades
outras, relações outras. São espaços que evidenciam vácuos, fissuras, brechas
no sistema como todo.
Isso implica seguindo o
pensamento de outro filósofo francês, a saber, Jacques Rancière, em disposições
de corpos, em recortes de espaços e tempos singulares que definem maneira de
ser, juntos ou separados, na frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe.
Isto é, o teatro mostra-se como uma forma da constituição estética – da
constituição sensível- da coletividade. A maneira como a comunidade ocupa o
lugar e o tempo, como o corpo em ato oposto aos aparatos disponibilizados por
uma logica desumanizadora- no sentido de bloquear, percepções, gestos e
atitudes que precede a política engendrada por tal lógica - permite pensar a
arte e a política como forma de dissenso, “operações de reconfiguração da
experiência comum do sensível”.
Nesse sentido, Imaginar, o ato de
imaginar possíveis se torna urgente. A imaginação diante do choque da realidade
da qual fazemos parte pode nos despertar, tirar-nos do entorpecimento de certa “verdade”
e dos discursos que a produz. O teatro mais do que imitar a realidade,
emprega-a para violentar as defesas de seu público. Já dizia Erwin Piscator “a realidade
é sempre o melhor teatro”. No espetáculo a cena do integralista é afirmação a
tudo isso. Seu discurso envolto à defesa
de um país “justo”, um país com ordem e progresso, um país que vota pelos bons
costumes, pela moral, pelo fim dos conflitos, um país sem contradição (pelo
menos como eles entendem), sem oposição, sem comunista. Um país que vota sim
por tudo isso. Um país que agora deve deixar as diferenças de lado e seguir em
frente, como aparece na propaganda do PSDB nos tempos atuais. Trechos do
manifesto integralista brasileiro são projetados ao fundo no momento do
discurso. Segue trechos retirados do manifesto “Deus dirige os destinos dos
povos. O Homem deve praticar sobre a terra as virtudes que o elevam e o
aperfeiçoam. O homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da Família,
da Pátria e da Sociedade. Vale pelo estudo, pela inteligência, pela honestidade,
pelo progresso nas ciências, nas artes, na capacidade técnica, tendo por fim o
bem-estar da Nação e o elevamento moral das pessoas. (...) Os homens e as
classes, pois, podem e devem viver em harmonia. É possível ao mais modesto
operário galgar uma elevada posição financeira ou intelectual. Cumpre que cada um
se eleve segundo sua vocação”.
Isso nos faz tomar como urgente a
criação de contra narrativas, a produção da partilha do sensível que embaralha
as disposições sociais com suas identidades fixas a priori. Que criam sistemas
das formas a priori determinando o que se dá a sentir. Retomando Rancière “a
política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de
quem tem competência para ver e qualidades para dizer, das propriedades do
espaço e dos possíveis do tempo”. As
convulsões contemporâneas exigem, sem dúvida, uma modelização mais voltada para
o futuro e a emergência de novas práticas sociais e estéticas em todos os
domínios.
Para voltar ao começo e a Brecht,
talvez, a figura do Dom Helder apareça como aquela que possibilitou o encontro
e ao possibilitar isso fez singularidades se organizar, não no sentido de se
filiar a uma mesma organização, mas agir segundo uma percepção comum. O legado
de Dom Helder possibilitou o início de um enunciado contrário aos enunciados
vigentes, o teatro o meio encontrado pela CIA para materializar de outra forma
tais questões e assim somar as forças e as frentes de ataques... e o fim? Aí é ficarem
atentos aos mais imperceptíveis gestos insurgentes do presente.
Enfim, a peça está em cartaz no
SESC Pompéia para quem quiser vivenciar uma experiência arrebatadora. Sempre de
quinta a domingo. Só até o dia 03/07.