segunda-feira, 19 de junho de 2017



Pensamento de uma madrugada em estudo

Dias atrás fui ver o espetáculo Antígona que estava no SESC Consolação e uma frase do espetáculo ficou martelando na minha cabeça, mas que também não lembro de certeza se era a que segue “eu crio pontes para encontrar o outro e assim derrubar barreiras”. Saí de lá com essa frase que, de novo, não tenho certeza se era assim mesmo e com a sensação ainda mais forte da importância da cultura para o viver-junto. Claro que a sensação não vem só desse espetáculo, mas de todos os outros e da pesquisa por outras formas de representação da vida em sociedade, que bem ou mal me servem de ferramentas para poder refletir acerca do viver no mesmo barco, isto é, na mesma sociedade. Levando em conta a dificuldade que é esse viver-junto.

Roland Barthes tem uma imagem bem ilustrativa num dos seus livros quanto ao viver junto. É mais ou mais assim: Uma pessoa X um dia está na janela da sua casa observando a paisagem urbana e os transeuntes. Quando de repente fixa seus olhos na caminhada de uma mãe com seu filho que é puxado pela mão. A mãe caminha rápido demonstrando certa pressa, como se tivesse hora marcada para chegar num compromisso. O filho pelo contrário, caminha como se contemplasse a paisagem pela primeira vez, num estado de deriva.

A força da mãe é maior que a do filho. Ela o puxa pela mão, ele querendo ou não adapta-se ao ritmo da caminhada dela. O poder nos diz Barthes, passa pela disrritmia, a heterorritmia. É pondo juntos dois ritmos diferentes que se criam profundos distúrbios. Justificando as mais cruéis repressões. Que poderiam ser evitadas se não fosse próprio de um poder político querer impor por diversas maneiras um ritmo único, o seu ritmo. No entanto, o autor também chama atenção para a experiência da idiorritmia, ou seja, aquilo que é próprio, que foge do código, do modo como o sujeito se insere no código social (ou natural). Uma espécie de movimento aberrante em prol de novas existências. Mas também um o entendimento da relação de poder como uma relação de força, portanto, como algo que possível de não se deixar capturar, que permite construir linhas de fuga, criar outras maneiras de viver-junto, de tecer a vida. É fácil? Não. Requer muito trabalho. Exige-se muita luta, exige-se que a força do imaginário aja sobre a maneira de viver, de se instituir, de fazer e de se fazer das coletividades social-históricas – e, mais particularmente, a maneira de integrar o indivíduo à vida coletiva. Entendendo o integrar aqui não como um mero ato anônimo ou de justaposição. Mas o imaginar e o concretizar certo co-pertencimento pela articulação, pelo esforço de imaginar a articulação de diversos grupos, indivíduos, movimentos que em si lutam pelas suas demandas individuais, mas que podem imaginar estratégias que os unam contra aquela força que os segmentam para os oprimirem, que os individuam para melhor controlar. De maneira a formar uma coletividade de singularidades concreta que rivalizará e terá força suficiente para constituir instituições que não mais reproduzam a desigualdade; produzindo e reproduzindo valores que enaltece um estilo de vida individual e coletivo que é posta a trabalhar a favor de um sistema que escraviza seja pela venda da força de trabalho, seja pela cooperação de um imaginário que está a serviço do mercado, do lucro, do capital.

Aqui podemos, talvez, falar da política cultural e da política da cultura. Pois temos que ter consciência da cultura como fato político. Que o mundo da cultura tem exigências, obrigações, poderes de natureza política. Maneira pela qual temos que tratar de saber qual a direção dessas exigências, a direção desses poderes. Uma política cultural no governo não é isenta de cálculo, de diretrizes, programas, imposições que provêm muitas vezes de políticos que são ali a representação de um sistema econômico, o representante dos interesses desse sistema. E que por conta disso se coloca na maneira como participa da vida política, como um obstáculo para o desenvolvimento da cultura, pois isso poderia significar a contestação da sua própria figura enquanto profissional daquele setor bem como do sistema que representa.

É dessa contestação que nasce uma regra de conduta para este homem de cultura que foi imaginado, experimentado, esculpido, dado uma forma. Uma regra de agir na sociedade de modo identificar os obstáculos para o desenvolvimento da cultura e assim poder removê-los. Comprometendo-se com a vida da política, com a dimensão política da vida. O que não se confunde com a profissão de político. A política que ele se faz portador é a expressão autônoma e irresistível da cultura na vida social, ou seja, uma política feita com fins para cultura, para o desenvolvimento da cultura e não feito por políticos para fins políticos, isto é, para fins de políticos com interesse econômicos, para fins da política como polícia; controle e regulação das condutas.

Uma política da cultura como defesa da liberdade. “Da promoção da liberdade e, portanto, uma defesa e uma promoção das instituições estratégicas da liberdade”. A consciência do valor da liberdade é fundamental para o desenvolvimento da cultura e, por conseguinte, do pensamento e da formação da sociedade. Renunciar a essa certeza é colocar em evidencia os princípios do retrocesso cujas consequências verificam-se mundo a fora. 

A liberdade no sentido aqui também do “não impedimento”. De uma cultura livre de impedimentos. Impedimentos estes que podem ser “tanto materiais, psíquicos ou morais: os primeiros colocam obstáculos ou dificultam a circulação e a troca das ideias, o contato dos homens de cultura; os segundos colocam obstáculos ou dificultam ou tornam completamente perigosa a formação de uma convicção segura através da falsificação de fatos ou da falácia de raciocínios, se não diretamente através de pressões de vários tipos sobre a consciência”. O que nesse sentido contribui para manutenção da ordem simbólica que é a condição do funcionamento da ordem econômica.

A política da cultura é uma posição de abertura em direção às posições filosóficas, ideológicas, mentais diferentes. É um abrir-se para o outro, que não necessariamente significa ser o outro uma pessoa. Pode ser uma ideia, uma sensação, um afecto. Ou mesmo algo que não se sabe ao certo o que é a princípio, não se consegue nominar, mas que se conserva pelo corpo, o lançando a experimentar encontros. Conexões outras que não as ofertadas pela ordem da cultura da polícia. É o criar pontes para o encontro, para assim derrubar os muros, os obstáculos. É derrubar os significados que são leis e que não se deixam pensar fora do seu decreto, ou seja, é preciso criar novos significados, novos esquemas representativos imaginários permitindo vislumbrar uma vida fora da cristalização vazia e pobre que a mesma se encontra constantemente capturada.

Talvez, a arte seja um dos caminhos possíveis para isso na exata mediada em que ela provoca um choque e por isso mesmo um despertar. Sua intensidade e sua grandeza estando indissociáveis de um abalo, de uma oscilação do sentido estabelecido. Aliás, isso muito se aproxima do pensamento do filósofo francês Jacques  Rancière para quem a luta coletiva por emancipação nunca se dá separada de uma nova experiência de vida e de capacidade individual. Para ele a emancipação social passa necessariamente por uma emancipação estética, por uma ruptura com as maneiras de sentir, de ver e falar. Passa pela construção de novas capacidades de articulação micropolítica de modos de vida capaz de proporcionar uma rede de produções estéticas como um princípio de imaginação ativa.

Não existe transformação social sem criação cultural. O que nos faz entender um pouco a estratégia da política cultural em vigor.  E o fato da cultura ser um campo muitíssimo importante de disputa. Tornando-se necessário o desvendar das raízes sociais pelas quais os interesses políticos e econômicos com seu objetivo prático de manutenção da ordem vigente e dos privilégios daí decorridos, operam uma naturalização desta realidade. A disputa é pelo imaginário, pelo sensível, pelo que daí se coagulará em formas de vidas. Em formas sociais.