domingo, 24 de setembro de 2017

A ciência é uma forma de conhecimento, de saber que tem como objetivo fornecer explicações teóricas profundas e abrangentes, com soluções o mais adequada possível para problemas gerados por ela própria. Ela, nesse sentido, tem uma função expansionista. Para alguns cientistas, sejam eles da exata ou das humanas, sua expansão significa a busca por um mundo melhor, um mundo que as pessoas possam viver melhor, que as descobertas possam contribuir para erradicar os males sociais etc. Mas para que as descobertas sejam possíveis, ela precisa de liberdade. Pois a mesma com sua racionalidade crítica derruba teorias formuladas antes para poder avançar. Por esse ângulo, de algum modo ela cria mundos, estabelece perspectivas.

Outra forma de conhecimento é o da arte. Na exata medida em que apresenta mundos distintos do seu. Ela como o OUTRO, ao encontrá-la, proporciona uma nova relação, um novo agenciamento. Ela, nessa perspectiva, exerce sua força pelo mundo de possíveis que carrega, nas possibilidades que o encontro com ela faz surgir: expande o individuo; expande a vida. Ela também precisa de liberdade. Pois também derruba forças conservadoras, ataca valores velhos. Ela como a ciência necessita de instituições políticas democráticas que se comprometam em salvaguardar a liberdade, em especial, a liberdade de defender a liberdade, e assim prevenir contra as formas de tirania.

Pensei tudo isso, por conta da peça que fui ver hoje, a saber, AMARELO DISTANTE. Uma peça que me apresentou o OUTRO: o escritor Caio Fernando Abreu. Um trabalho sensível. Que me tocou pelo mundo (com suas possibilidades) que surgia da vida do Caio Fernando, fazendo com que eu pensasse o meu. Que me tocou por escancarar como a história do mundo ao se encontrar com a história de cada um coagula certo individuo, deixa suas marcas. O teatro, talvez, tenha esse quê de alteridade inerente a ele. Outra coisa que chama muita atenção é o poder da palavra. O poder da palavra poética ressoando pelo espaço vazio do teatro e dela emergindo os mundos do Caio, seja ele o privado ou o público. O teatro com seu palco vazio, mas preenchido pela força da palavra. Pela força sensível da encenação ao priorizar a palavra e a partitura corpóreo-cênica. Pela força do trabalho do ator que dá vida ao mundo Caio. Saí com a sensação que, talvez, o mundo ande surdo para poesia, para as vidas paralelas, para aquelas vidas que abrem um risco de água que pode vir a ser um rio.
Como diz o texto da peça: “se a realidade nos enche com lixo, a mentalidade deve nos encher com flores” (acho que era mais ou menos isso).


Enfim, não conheço muito bem a obra e vida do Caio Fernando, mas gosto de pensar por meio do espetáculo nessas vidas que nos apresentam formas outras de estar no mundo. Para quem quiser conferir o espetáculo, ele tá o TUPS até o próximo fim de semana. Sábado às 20h e Domingo às 18h.

domingo, 17 de setembro de 2017

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa: entre uma coisa e outra há o meio


                                            (quadro: Operários; de Tarsila do Amaral)

Dizer que a esquerda e a direita se unem no reacionarismo, é Jogar a “água da bacia, com criança e tudo”, ou seja, é não conseguir distinguir uma coisa da outra. O que exige, no mínimo, colocar em perspectiva o conceito bem como as dimensões. E aqui vou tomar como perspectiva a definição de Gilles Deleuze, para quem a esquerda se caracteriza por pensar sempre de fora para dentro, nunca do umbigo para fora. Nesse sentido, uma se caracteriza pela forma conservadora (de certa forma de vida) e excludente, mesmo porque quando inclui, inclui excluindo a multiplicidade, as singularidades; inclusão sem resíduos, perspectiva unilateral, reproduzindo-se pela homogeneização, pelo padrão, que não foi e não é constituído pela maioria numérica, mas por uma minoria maior econômico e politicamente. Outra coisa são forças políticas que criticam essa ordem estabelecida, identificando-se com lutas por transformações socializantes. Sendo uma multiplicidade fragmentária de corpos necessitados e excluídos, uma fratura intensiva: nem pode ser incluído no todo e nem pertencer ao conjunto que está desde sempre incluído. O que requer pensar o lugar de onde estão falando e sobre o que estão reivindicando. Uma coisa é uma minoria não numérica pretender ser ouvida, tornando sua pretensão um grito, grito, aliás, que incomoda porque demonstra, entre outras coisas, a indignidade de falar pelos outros. Os que reivindicam têm sua fala e sua potência. A questão é saber se os mecanismos que são utilizados pela esfera reacionária para tornar inaudíveis esses gritos, essas pretensões, não são de alguma maneira, empregados por parte daqueles que muitas vezes habitam uma dimensão mais a esquerda, mas que vive numa espécie de esquizofrenia ou infantilização, fruto (não sem luta, me parece) de uma violência simbólica de um sistema que se reproduz nas instituições dominantes com seus aparelhos de objetivação.


Numa esfera o que é posto é a eliminação da multiplicidade, na outra é a democratização, que é mais do que acesso, é também a participação constituinte, por isso conflitosa, mas também criativa porque exige a criação de espaços e tempos que comportem essa multiplicidade, exige o encontro, o debate, a troca. Está-se falando, nesse sentido, para além dos indivíduos isolados, ou seja, está-se falando de uma estética da existência enquanto formas de vidas: maneiras de fazer, ver e ouvir. Modos de encontros e, por isso, de dissenso, e tudo que certa esfera reacionária não quer é dissenso, dissidentes. 

quarta-feira, 13 de setembro de 2017



Um exercício de imaginação.

E Se. O Se tem relevância e sua importância, que o diga o sociólogo Gabriel Tarde: "Dizer se não é apenas lícito; é útil, é necessário; nenhuma lei teria sido descoberta e formulada pelo homem se não fosse dotado de faculdade de dizer se". E se ao final de 2018 um candidato de esquerda (nem falo que vai ser o Lula, pois dada a atual conjuntura isso parece ser cada vez mais distante), ou melhor, um centro-esquerda chegar a vencer as eleições (por mais que isso hoje seja distante pensar), ele governa? E mais, como chegará o Brasil ao final do governo ilegítimo? Com uma lógica de uma política estritamente econômica, o que gera insegurança das pessoas e dos bens, acarretando fenômenos dispendiosos e mais custos com policiais, pois precisa assegurar que essas pessoas não venham a se revoltarem. Pois basta passarmos os olhos em qualquer jornaleco veremos a taxa de desemprego no país é enorme (com perspectivas ainda mais assustadoras em relação à população jovem), para não falar daqueles que perderam seus benefícios (que diga de passagem é quase nada) retornando a um estado de vulnerabilidade social; o que em muitos casos significa um entendimento por parte dessa parcela da população de não se ver como cidadão, lançando-o num estado de destrutibilidade psicossocial de fortes implicações e marcas, levando-o buscar, infelizmente, em outros lugares formas de conforto e realizações. Se adequando ao estatuto de uma sobrevida, ao invés de se revoltar. Mas para quem não tem nem o que comer, como terá força para se revoltar? Para quem sempre foi estigmatizado, criminalizado, como lutará contra um Estado policialesco? E não podemos esquecer que com a violência física vem a violência simbólica. A produção de certo saber e sua circulação produzindo a doxa da naturalização e conformismo. Toda uma violência estrutural exercida, mas que se apaga no emaranhado do jogo político-econômico e nas narrativas construídas por ele. E Quem dirá em sã consciência que isso é uma construção social e uma escolha que busca privilegiar alguns em detrimento de outros, ou seja, que a involução de um Estado para alguns (no seu aspecto penal, de sacrifício das funções sociais: saúde, educação, cultura, habitação, assistência etc) é necessário para que outros gozem de um Estado que mantêm as garantias sociais, no caso os privilegiados, "suficientemente cacifados, para quem possam dar garantias e seguranças" são escolhas para melhor exercer a dominação? Quem dirá? Ah, os “esquerdopatas”. Os comunistas, os imorais, os que são contra a família, propriedade e tradição, os que vivem uma ilusão (segundo alguns especialistas, que são os mesmos que faltaram em tal aula) da existência do regime militar como um regime de exceção, portanto, uma ditadura. 

Nesse sentido, o Se (como o possível) vai perdendo terreno se estreitando nos caminhos construídos das possibilidades dadas anteriormente. O Se, no caso de chegar a ser eleito parece bem distante, e se (olha ele aí) vier a acontecer de chegar, parece bem provável que não consiga governar, pois o projeto em desenvolvimento por certo grupelho não permitirá. O projeto para o Brasil que eles têm é outro. É um projeto com benefícios para poucos. A cultura e a política nisso são determinantes. Desse modo, parece interessante averiguar que o ataque hoje não parece ser apenas a um ou a outro personagem, mas a uma forma de Estado mais social, a uma forma de realidade social mais próximo daquilo que um dia sonhamos ser igualdade. O Estado em voga, o Estado com prevalência econômica é o Estado neoliberal, é o Estado do abandono dos terrenos das ações sociais. A sua prevalência se deve a "um trabalho de doutrinação simbólica do qual participa passivamente os jornalistas, simples cidadãos, e, sobretudo, certo número de intelectuais" e ignorantes das artes. Além, claro, da violência em forma de genocídio contra parte da população, parte não, vamos dá nomes: a população negra e os povos indígenas. A esquizofrenia dos três poderes que hoje opera no país não é nada fora do lugar e nem, talvez, a anunciação da morte, e sim, uma técnica de governo com objetivos e bem claros.

Um salto. Não sei se foi no Walter Benjamin ou Mauricio Blanchot que li sobre uma passagem da Odisseia de Homero, que um dos autores, interpretava a travessia de Ulisses pelo lago das sereias. Na passagem Ulisses Manda os marinheiros (o povo, escravos?) colocarem cera nos ouvidos para que não ouçam o lindo canto das sereias e, desse modo, evitem se jogarem ao mar por conta de tanta beleza. E pede que o amarre. Para ele ouvir o canto e usufruir de sua perfeição. A metáfora é boa pensar o comportamento dos nossos defensores dos bons costumes. Hannah Arendt tem um texto belíssimo sobre a cultura que também pode ilustrar o comportamento de tais defensores. Nele a autora dedica-se um tempo refletindo sobre a figura do Filisteu Burguês. Grosso modo, é aquela figura que não sabe lidar com a cultura, a não ser quando a mesma torna-se mercadoria; algo a título de consumo e, por conseguinte, fadada ao desaparecimento. Sendo que eles podem viajar e usufruir.



As forças reacionárias são muitas. Mas devemos manter o Se vivo, penso. E se perguntarmos o que há de político na política e com isso buscarmos outras formas de exercê-la? Talvez assim, outro possível possa vir a existir. Pois como pensa os aberrantes: “um pouco de possível senão sufoco”.