sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A poesia viaja pela concretude de SP no canto-poético-encenado da trupe Sinhá Zózima

A poesia viaja pela concretude de SP no canto-poético-encenado da trupe Sinhá Zózima

Num dos mundos sonhados por Einstein há dois tempos: o mecânico, metálico e rígido como um pêndulo, e o corpóreo, que ondula como peixe. O primeiro é inflexível, o segundo se decide à medida que se move. Para muita gente, o tempo mecânico não existe. Ignoram os relógios, comem quando têm fome, fazem amor a qualquer hora do dia, sabem que o tempo avança aos solavancos, que anda com dificuldade, que carrega um grande fardo, mas que voa quando estão felizes. Por outro lado, há aqueles que pensam que seus corpos não existem. Eles vivem de acordo com o tempo mecânico. Levantam-se às sete da manhã. Almoçam ao meio dia e jantam às seis. Trabalham quarenta horas por semana, leem o jornal de domingo no domingo, jogam xadrez nas terças à noite. O desespero advém quando os dois tempos coincidem, ao invés de seguirem cada um seu curso.( SONHOS DE EINSTEIN. de Alan Lightman)

19:36. Chego à estação de metrô Pedro II e sigo em direção ao terminal urbano parque Dom Pedro II, localizado na Av. Estado. Bairro do Brás. Ao atravessar a passarela encontro dois funcionários do terminal. Pergunto-lhes se conhecem um grupo de teatro que faz apresentações ali. “Sim!” Responde um deles. Não satisfeitos em só responder, resolvem me levar até o local de concentração para peça. Ao me aproximar do ponto sou abordado por um rapaz que me entrega um flyer do espetáculo.
19:45. Pego meu livro para ler, mas logo sou tomado pela paisagem do terminal. Meu olhar começa a percorrer arquitetura daquele terminal bem como a observar os transeuntes. Cada pessoa que passa imagino sua história, sua trajetória. De onde vem para aonde vão. Pessoas simples. Pessoas com marcas no corpo de sua história de vida, de suas batalhas diárias. Senhores, senhoras, o “homem comum”. Aquele que de uma forma ou de outra fez, faz e é feito por esta cidade.

19:50. Passa um senhor de cabelo branco, roupa surrada carregando nas costas uma caixa de frutas. Em seguida uma senhora, ela, carregando um caixa de mandioca. Os dois com passos apressados. Cruzam o espaço numa rapidez tremenda como se tivessem correndo para não perder algo. Talvez, o ônibus que os levariam até suas casas. Sucessivamente pessoas e mais pessoas cruzam o espaço em direção a alguma linha, em busca dos seus destinos. Um tanto de pessoas, um tanto de trajetórias. Um tanto de Joãos, de Marias, de José(s), Lindalva(s), um tanto de meninos, meninas, doidos, mulheres.

20:05. Pela catraca vem se aproximando a trupe. De um lado chega o primeiro-personagem-trajetória, de outro chega o segundo. A cada passo seu, uma marca fica pelo chão daquele terminal. O primeiro carrega nos seus pertences e figurino toda sua vida, e os instrumentos para cantá-la e assim seguir, inventando, encenando, humanizando.  As mulheres-personagens se aproximam. Cada uma, uma alegoria da “mulher comum”, da mulher social, com suas histórias singulares e por isso sociais. Uma roda se estabelece e o canto ressoa pelo terminal. Um canto poético, um canto que fura a concretude daquele terminal, fazendo emergir -numa primeira vez, das muitas que viriam a emergir- o espaço da poesia, ou dos tesouros poéticos que muitas vezes a dura realidade encobre. Ao iniciar o canto uma senhora e depois um senhor (que parece ali viver) se aproximam da trupe. Não atoa. No canto poético da trupe eles se veem.

20:30. Seguimos em direção ao embarque. No trajeto sou perguntado, mas não só eu, pelos personagens alegóricos “se seu coração pudesse viajar qual seria seu destino?”. Diversas foram as respostas. Embarcamos. O trajeto daquela noite seria sentido o terminal São Miguel. Linha 3301/10. Entramos juntos. Nós espectadores-viajantes que ali esperavam pelo espetáculo. Mas com nós também embarcaram todas aquelas vidas-destinos-história-saudades-poesia. Eles voltavam para suas casas. Inicia-se com o espetáculo o tempo do trajeto concreto de volta para casa, assim como, o tempo poético de volta para si e o para o mundo do sensível.

O ônibus surgiu - não como ele é hoje - em 1826. Sua função era estabelecer o transporte do centro da cidade para os arredores.  Foi ele e é ainda um dos principais instrumentos coletivo de ligação da cidade. Com a industrialização e, por conseguinte, urbanização, o ônibus ou coletivo como muitos o chamam, ganha uma função fundamental para cidade. Ele se torna um local coletivo. Um local de contato. De encontros e desencontros. De histórias. De trajetos. Não por acaso a escolha da trupe Sinhá Zózima em escolher o ônibus como espaço cênico, como meio. Há uma longa história de performances informais que ocorrem (na tomado do uso) de locais que não foram imaginados arquitetonicamente como teatro. E ao serem tomados esses locais ganham uma nova significância, promovendo deslocamentos que podem vir a servir de material de combate a certas formas estratificadas, fixas, mortas. 

A trupe ao encenar sua peça naquele espaço que é o ônibus me parece promover uma suspensão ao tempo do relógio, da máquina, da função, da realização em proveito de um tempo poético. Um tempo da vida, da contemplação, do sentido, do afeto. Um tempo do sentir. Me parece fazer com que nos voltemos para o humano. Nos confrontando com ele, o que dele estão fazendo.

Se por um lado a cidade se tornou um lugar de passagem, de transito. Na encenação da trupe se torna o cenário de um confronto entre o concreto frio e morto das formas que ela ganhou durante sua construção e a força-devir da poesia do espetáculo que nos desloca, nos afeta, nos transforma. Se o ônibus é um “não-lugar”, ou seja, um espaço despersonalizado, de circulação, que faz com que o cidadão seja só, mas com outros, e que mantenha com esse outro apenas uma relação contratual representada por símbolos- sejam eles um bilhete ou um cartão- com a encenação da trupe ele se torna um lugar, na medida em que todos estão em relação ao que está sendo apresentado. Ele se torna um lugar na exata proporção que escapa da história-funcionalidade para daí permitir a insurgência da troca pela poesia e pelo que ela é afeta. Se nos não-lugares você passa, nesse você até passa, mas não passa ileso, mesmo que seja imperceptível o que aquilo, naquele momento provocou.

O interessante é ver como o coletivo tenta responder a tudo isso no tempo do trajeto físico sem deixar ruir o tempo do sensível. A forma que a trupe encontrou para expressar esse transito, esse conflito. A escolha por personagens alegóricos: a menina, o menino mensageiro (o menino passarinho que a cada carta que entrega é um ninho, nem que seja o ninho o coração do outro) a mulher, o louco. Personagens sociais que não perdem sua humanidade, pelo contrário, exacerba ao reivindicar o sensível que faz parte da constituição do sujeito social.  Ao tornar visível por meio de tais personagens o coletivo que somos a trupe universaliza o particular. Não porque sejamos todos os mesmos em todos os lugares e tempos, mas porque suscita naquele que ver uma aproximação no que se refere ao humano, ao que é o homem. Ou ao que ele não é. Uma espécie, talvez, de alteridade radical.

A forma escolhida pela trupe para expressar o conteúdo que da sua pesquisa ergue-se foi do teatro narrativo. E me parece muito bem acertada na exata medida em que a narrativa rivaliza com a imagem da cidade. Se na narrativa temos um jorro de poesia, na imagem da cidade com o passar do tempo e do trajeto o que temos é cada vez mais uma imagem dura. O que nos faz ter uma dureza do olhar, uma surdez para o mundo. E isso não porque sejamos insensíveis ao mundo, mas porque em muitos momentos é a maneira pela qual encontramos de seguir sem nos deixar desfalecer, morrer totalmente. Ou seja, uma forma de fuga, pois como já diria Espinosa não podemos nos abrir a tudo, já que ao ser afetado por tudo pode não restar nada de nós mesmos. Todavia, tudo isso se torna um paradoxo, pois se por um lado pode ser uma fuga, por outro pode de fato se tornar a violência do insensível. A violência do não enxergar o outro como outro, não ouvir os gritos daqueles que sempre foram a parcela dos excluídos na história do mundo.

O que é instigante perceber com os elementos cênicos, com a forma do espetáculo,  como a trupe consegue potencializar o estado estético, e com isso, suscitar uma espécie de interrupção na linearidade do trajeto. Conseguem tornar o meio potente. Quase como na expressão do Guimarães Rosa que o importante não está nem no começo, nem no fim, mas no meio. E esse meio criado, experimentado cria paisagens outras. Como Durante o percurso somos testemunhas desse grito poético. Cada personagem procura alguém ou algo, a menina procura sua mãe, a mulher seu marido, a moça um namorado, a grávida o futuro, o louco o tempo perdido, o menino mensageiro alguém para entregar sua última carta. Cada um a sua maneira vão deixando rastros para servir de caminho, de ligação. A menina vai deixando suas rosas pelo ônibus na esperança de encontrar sua mãe. Sua ação faz florir do ferro morto do ônibus uma terra, faz o tempo girar em círculo ou fluir ao revés, faz nós espectadores enxergar outra coisa que não mais ó automóvel.  Que sua mãe pode ser a mãe terra da qual somos a cada dia separados.

A sensação é que a trupe no jogo vivo com a dramaturgia, com a encenação, com acaso, fez de sua obra, uma obra aberta, por isso mesmo potente. Aberta porque necessita de quem ver, de quem viaja junto, as pontes necessárias para efetuação do espaço-poético-teatral. Necessita do parceiro-espectador que as brechas deixadas pela dramaturgia seja preenchidas. Não necessariamente significa preencher essas brechas uma busca pela totalização da obra na intenção do entendimento de todo trabalho. Pode significar ao preencher essas brechas, o sentido que cada um ali dar para aquilo que ver que experimentou durante o percurso. Até porque muitos iam ficando pelo caminho, pois chegavam aos seus destinos.  E a obra assim só se fazia, se completava no que ela provocava naquele que vivenciou, mesmo que por pouco tempo aquela experiência. O que interessava era o meio.

Enfim, um espetáculo-transito-deslocamento do espaço físico e de nós mesmos. Um espetáculo que nos convida a olhar não mais pelo filtro do concreto, e sim, pelo sensível que cada vida pode trazer.
Como sempre deixo claro, a escrita acima não necessariamente significa o que seja o espetáculo. Ele é bem mais do que eu aqui tentei expressar. Vale com isso a ida de todos, para assim, poder tirar suas próprias conclusões.

PS: na volta, ainda ganhamos um BIS de músicas as mais belas.


Vão todos!!!!

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Crédito da foto: Felipe Stucchi (retirada do Google).

Artaud no Teatro Oficina

"Para dar um fim ao juízo de Deus" de Antonin Artaud está em cartaz no Teatro Oficina aqui em São Paulo. Um dos mais belos textos de Artaud reencenado por um dos ícones do teatro brasileiro.

Artaud começa seu livro “O teatro e seu duplo” da seguinte maneira: “Nunca como neste momento, quando é própria vida que se vai, se falou tanto da civilização e cultura. E há um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para reger a vida”. Toda questão que se colocava para o artista francês era acerca do que a cultura ocidental com seu processo civilizatório estava fazendo com a vida. Ele enxergava nesse processo civilizatório a ruína da própria vida e a afastamento de sua potência. Percebia que pouco a pouco os indivíduos eram cortados das suas conexões vivas para se submeterem a um estilo de vida que os codificavam. Fazendo, assim, da sua vida e seu teatro um constante combate as segmentarizações, balizas pelos quais o corpo e a vida passavam.

Para Artaud o homem era prisioneiro de um mau corpo "que lhe proíbe toda a poesia e a força a viver sob o irremissível pelourinho das leis, sejam de exército, de polícia, de igreja, de justiça ou de administração". Não por acaso, ele escreveu a peça radiofônica que o teatro Oficina encena. Ou seja, a peça não era outra coisa se não a reivindicação pelo fim do juízo, no sentido do fim do julgamento, no fim da vida COMO TRIBUNAL. Um combate a todo tipo de condicionamento inato que pesava sobre o corpo, pois ele sabia que a vida, era determinada social, histórica, e politicamente. 

Na percepção de Artaud se instaurava na vida uma espécie de "sistema de julgamento", por meio dessa grande fortaleza que se sustenta sobre os pilares do Estado, da família, da razão ocidental, da moral cristã etc. Não sendo só um sistema, mas também a produção de uma espécie de dependência e de rebaixamento vital. Este "sistema de julgamento" sendo um mecanismo de poder que se abate não só sobre a consciência, mas também sobre o corpo (o corpo carregando esse julgamento). Portanto, sobre o corpo incidindo múltiplos mecanismos de silenciamento, disciplinarização, monitoramento.

Num outro contexto, o filósofo David Lapoujade retomando os escritos de Nietzsche, Espinosa e Deleuze, entre outros, nos conclama a pensar “Mesmo nas situações cada vez mais elementares, que exigem cada vez menos esforço, o corpo não aguenta mais. Tudo se passa como se ele não pudesse mais agir, não pudesse mais responder ao ato da forma, como se o agente não tivesse mais controle sobre ele. Os corpos não se formam mais, mas cedem progressivamente a toda sorte de deformações. Eles não conseguem mais ficar em pé nem ser atléticos. Eles serpenteiam, se arrastam. Eles gritam, gemem, se agitam em todas as direções, mas não são mais agidos por atos ou formas. É como se tocássemos a própria definição do corpo: o corpo é aquele que não aguenta mais, aquele que não se ergue mais”. Ou seja, há toda uma ação para que o corpo não experimente-se, vivenciando assim, sua potência, mas que ele se adeque, a uma certa forma, a um certo estilo. Voltando a Artaud podemos dizer que o corpo sai de um estado de potência (que implica criar possíveis e esgotá-los) para um estado de cansaço (que só responde aos estímulos dados, que está sempre a correr atrás de algo... A cumprir tarefas.). Ele perde aquilo que é a sua maior força, isto é, a capacidade de afetar e ser afetado e nessa relação, a capacidade de criar fora do instituído. Ele cansa e ao cansar ele adere.

A vida através do corpo se torna o alvo. E não é de agora, mas os dispositivos usados na contemporaneidade se diferem em muito de outros tempos. E é aí que Penso ter perpassado a encenação do teatro Oficina. Ou seja, ainda toda (no meu olhar) direcionada por uma critica à moral cristã e seus adjacentes, numa tentativa de profanação desse corpo e que faz muito sentido ainda hoje, entretanto, talvez, devêssemos olhar, para os novos mecanismos de aparelhamento e controle da vida e, portanto, dos corpos. Olhar para toda produção de saber da medicina que permite por meio dela justificar diversas intervenções sobre o corpo humano e o direcionamento para o que eles caracterizam de "boa vida".  O filósofo francês Michel Foucault chamou atenção para a passagem do “Estado territorial” ao “Estado de população”, isto é, a passagem de uma forma de exercício de poder centrado num corpo máquina para incidir sobre o corpo espécie, no corpo como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível da saúde, a duração da vida. Tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controle reguladores, através de uma biopolítica da população.

Na peça radiofônica Artaud chega a falar (profetizou um futuro próximo?) dos micróbios em substituição a Deus. Que poderia ser pensado como toda produção de doenças e curas sobre o corpo. Ou mesmo dos investimentos do exército americano (na peça ele cita) sobre as crianças e seu esperma. Na tentativa de descobrir o "melhor funcionamento" para o corpo, desde que adestrado, docilizado numa tentativa de ampliar suas aptidões e espoliar suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade. Nesse sentido, o que se verifica é a constituição de um corpo que funciona, um corpo organismo que funciona para o trabalho, para guerra, que funciona conforme uma máquina produtiva. Para Artaud a organização do corpo já é uma hierarquia de juízo, de condenação.

Estou tentando pensar através da encenação do espetáculo, como a obra de Artaud ilumina possibilidades de enxergar a vida e o corpo como alvo da política moderna enquanto forma e estilo. Retomando Foucault podemos verificar ao final de “História da sexualidade vol.1: a vontade de saber”, a sintetização do processo através do qual no início da modernidade, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos e cálculos do poder estatal, transformando a política em biopolítica: "o homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja a política, sua vida de ser vivo está em questão".

Artaud, talvez, dissesse que é a vida-corpo ganhando carne, ganhando forma, mas não a forma que ele desejaria, mas a forma que o "sistema de julgamento", através dos seus pilares imprimiu. Eis que nos diz Artaud em "Para dar fim ao juízo de Deus": "Para existir basta abandonar ao ser, mas para viver é preciso ser alguém e para ser alguém é preciso ter um OSSO, é preciso não ter medo de mostrar o osso e arriscar-se perder a carne".

É como se ele nos chamasse a resistir abandonando essa carne que delineia uma certa forma. Uma forma escrava de si e do outro. Na encenação do Oficina tem uma passagem muito poética e esclarecedora que se assemelha a esse ato. O momento dos corpos se vestindo e se conformando a um corpo imune, a uma corpo órgão. Tal ação poética me fez recordar o livro do Roberto Esposito "Bios" e suas várias páginas destinadas "A carne". E principalmente na passagem que segue “Quero dizer que todas as vezes que o corpo foi pensado em termos políticos, ou a política em termos de corpo, produziu-se sempre um curto-circuito imunitário destinado a fechar o 'corpo político' sobre si próprio e dentro de si mesmo em oposição ao seu exterior".

O que o autor italiano verifica acima citado é o inverso do que Artaud vai propor para vida, vai reivindicar com seu teatro. Principalmente com o teatro e seu duplo. Permitindo-nos, assim, alargar o conceito de política, e entender a política como um ato de experimentação, como um ato ético e estético como queria Gilles Deleuze e Felix Guattari. Ética porque é potência e promove alianças, requer com o outro essa experimentação e efetuação. Estética porque produz formas novas de estar no mundo. Portanto, seguindo a lógica dos autores, devemos pensar via Artaud, em oposição ao "sistema de julgamento" o "sistema da crueldade" que não tem nada a ver com o entendimento de crueldade hoje, mas com o corpo a corpo, com embate dos corpos que não permite sair imune ou ileso da batalha travada por essas vivencias e experimentos. Para abertura das forças múltiplas presente no outro. E com isso para abertura de possíveis.

Talvez possamos, nesse sentido, pensar Artaud via oficina como a resistência a investimento biopolítico e seu processo de imunização do corpo físico e político na medida em que “Artaud-Oficna-Zé” proclamam um embate dos corpos, uma abertura para o exterior, e um confronto com o fora que nos constitui. Um corpo-sem-órgãos como ele queria “Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força, mas não existe coisa mais inútil que um órgão. Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. Então poderão ensiná-los a dançar às avessas...". Tem algo em Artaud com sua arte, especificamente aqui o teatro, que nos possibilita pensar o presente e possibilidades de resistência (ou como gosta de dizer Zé Celso;  Re-existência). O que o teatro do artesão do corpo sem órgãos nos faz perceber, talvez, é que a força política (de ação) do teatro na contemporaneidade estaria no fato mesmo de interromper certa apreensão da realidade e menos numa representação da mesma ou em reproduzir uma forma pautada na transmissão.

Todavia, tudo isso tem que se ser verificado no presente do combate, nas formas (ferramentas) possíveis encontradas naquele momento para efetuação de algo que possa vir a ser ou na própria constituição dos possíveis, e, portanto, das formas-ferramentas para efetuação de algo novo. A força do teatro pode emergir nessas suas direções, por um lado, buscando traçar novas conexões ao que já existe, permitindo novos sentidos. Por outro, efetuando novos possíveis à medida que experimenta.

Vale muito ver a peça. Último fim de semana. 

sexta-feira, 24 de junho de 2016

O avesso do claustro CIA do Tijolo: ou como eu vivenciei



Brecht em um dos seus últimos textos insistia que “o mundo de hoje não pode ser descrito aos homens de hoje a não ser que lhes seja apresentado como transformável” nesse sentido, podemos dizer que para o autor alemão o mundo não cessa de se transformar e de nos transformar. Brecht também dizia que triste era o mundo que precisava de heróis. No entanto, talvez devêssemos pensar que algumas são as figuras, na barbárie, que tornam suas vidas uma obra de resistência, um ato de coragem e que em torno dela se agrupam, “como num cacho de uva”, um monte. E que nesse agrupamento insurge contra uma lógica de mundo, contra um tempo sombrio. Pressionando o mundo ali onde ele mais se conserva por meio dos mais diversos dispositivos.

Uma dessas figuras me foi apresentada hoje de forma poética; como um grande poema que nos atravessa e nos lança para fora do trem em movimento. Possibilitando assim o fazer ver e sentir fora do trilho do tempo e espaço, numa espécie de extemporaneidade. De certo que tudo isso não é de forma alguma um ato fácil, apaziguado, mas um ato cruel por nos rasgar e fazer vibrar aquilo que no nosso corpo a muito tinha sido e vem sendo capturado e tornado organismo como diria outro gênio do teatro Antonin Artaud. Retardando assim, percepções outras do mundo, da vida e, por conseguinte, da instituição de um mundo outro, vida outra.

A figura a qual me refiro se chamou Dom Helder. A Companhia responsável pela forma poética se chama CIA do tijolo. O espetáculo: O Avesso do Claustro.
O teórico Bernard Dort no seu livro “o teatro e a realidade” chama atenção para o fato de como “evocando o mundo em que vivemos, o teatro estará à altura de propor a seus espectadores imagens de nossa vida social suficientemente fortes para que possam, se não concorrer com as que são fornecidas sem descanso pelas revistas, pelo cinema e sobretudo pela televisão, ao menos proporcionar prazer e suscitar uma reflexão totalmente diversa”. Parece-me está na poesia (não só com o gênero literário) a produção dessas imagens. E me parece que a encenação da obra aqui em questão proporciona tal prazer e suscita tais reflexões.

O palco se torna um grande canteiro de obras. Onde tudo se torna ferramenta para materialização cênica. Onde o jogo é vivo. Onde a teatralidade pede passagem e exige autonomia em relação ao discurso, mas que por conta disso torna o discurso ainda mais potente, uma arma cortante. A forma encontrada pelo CIA do Tijolo para encenar o legado de Dom Helder permite-nos vivenciar a força que pode ser o teatro. Esse lugar heterotópico como dizia Michel Foucault, ser o teatro; esse não lugar dentro do lugar, mas que cria avessos, produzem outros tempos, imagens e que, por isso mesmo, age, mesmo forma pequena, sobre a realidade, o mundo. Se num primeiro momento não se enxerga os efeitos, eles passam imperceptíveis, em outro, isto pode emergir com uma força até então inimagináveis. 

Acompanhar a encenação do espetáculo é perceber tempos e espaços conectando-se. Trajetórias se encontrando, não no mesmo tempo e espaço da realidade, mas possível no tempo espaço do teatro, fazendo com que se conceba plano de percepções. O que isso quer dizer; que as trajetórias envolvidas, cruzadas pelo tempo mundo, podem de alguma maneira gerar percepções comuns sobre o mundo na medida em que se verificam atos de resistências, de combate à barbárie que surgem e se perpetua em tempos e espaços os mais diferentes. O que nos faltam, muitos ativistas acreditam, é uma percepção partilhada da situação, sem essa ligadura, os gestos se apagam no nada e sem deixar vestígios.

Na peça a gente acompanha como bem explicitado no seu programa, “a trajetória de três personagens cheios de questionamentos e perplexidades diante de nosso momento histórico e atual. Três figuras que perambulam pelo centro de três grandes cidades brasileiras: Um pesquisador em visita ao recife, uma moradora que caminha pelas ruas da cidade de São Paulo e uma cozinheira que vive aos pés do Cristo Redentor se encontram para ouvir de novo a voz do Bispo Vermelho, ouvir seus poemas e histórias, dialogar com ele, concordar com ele e por vezes questiona-lo”. E é no encontro desses três e suas relações com Dom Helder, que verificamos a produção de uma percepção partilhada da situação. A produção de uma inteligência partilhada, o posicionamento de algumas peças, dentre elas, a de uma linguagem que exprime, ao mesmo tempo, a condição que nos é apresentada e o possível que é a fissura.

No programa da peça a CIA verificamos o seguinte trecho: “diante desse encontro inusitado no espaço e no tempo, só possível no teatro, atores, personagens, palco e plateia buscam reaprender a imaginar novos mundos possíveis em tempos obscuros”. Ou seja, o teatro ao permitir tal encontro faz ver a possibilidade de se criar contra informações à profusão cotidiana de informações, que molda nossa apreensão de um mundo. Desse modo podemos retomar Foucault quando ele nos fala do teatro como um contra-espaço, um espaço fomentador de corpos outros, subjetividades outras, relações outras. São espaços que evidenciam vácuos, fissuras, brechas no sistema como todo.
Isso implica seguindo o pensamento de outro filósofo francês, a saber, Jacques Rancière, em disposições de corpos, em recortes de espaços e tempos singulares que definem maneira de ser, juntos ou separados, na frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe. Isto é, o teatro mostra-se como uma forma da constituição estética – da constituição sensível- da coletividade. A maneira como a comunidade ocupa o lugar e o tempo, como o corpo em ato oposto aos aparatos disponibilizados por uma logica desumanizadora- no sentido de bloquear, percepções, gestos e atitudes que precede a política engendrada por tal lógica - permite pensar a arte e a política como forma de dissenso, “operações de reconfiguração da experiência comum do sensível”.

Nesse sentido, Imaginar, o ato de imaginar possíveis se torna urgente. A imaginação diante do choque da realidade da qual fazemos parte pode nos despertar, tirar-nos do entorpecimento de certa “verdade” e dos discursos que a produz. O teatro mais do que imitar a realidade, emprega-a para violentar as defesas de seu público. Já dizia Erwin Piscator “a realidade é sempre o melhor teatro”. No espetáculo a cena do integralista é afirmação a tudo isso.  Seu discurso envolto à defesa de um país “justo”, um país com ordem e progresso, um país que vota pelos bons costumes, pela moral, pelo fim dos conflitos, um país sem contradição (pelo menos como eles entendem), sem oposição, sem comunista. Um país que vota sim por tudo isso. Um país que agora deve deixar as diferenças de lado e seguir em frente, como aparece na propaganda do PSDB nos tempos atuais. Trechos do manifesto integralista brasileiro são projetados ao fundo no momento do discurso. Segue trechos retirados do manifesto “Deus dirige os destinos dos povos. O Homem deve praticar sobre a terra as virtudes que o elevam e o aperfeiçoam. O homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da Família, da Pátria e da Sociedade. Vale pelo estudo, pela inteligência, pela honestidade, pelo progresso nas ciências, nas artes, na capacidade técnica, tendo por fim o bem-estar da Nação e o elevamento moral das pessoas. (...) Os homens e as classes, pois, podem e devem viver em harmonia. É possível ao mais modesto operário galgar uma elevada posição financeira ou intelectual. Cumpre que cada um se eleve segundo sua vocação”.

Isso nos faz tomar como urgente a criação de contra narrativas, a produção da partilha do sensível que embaralha as disposições sociais com suas identidades fixas a priori. Que criam sistemas das formas a priori determinando o que se dá a sentir. Retomando Rancière “a política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidades para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo”.  As convulsões contemporâneas exigem, sem dúvida, uma modelização mais voltada para o futuro e a emergência de novas práticas sociais e estéticas em todos os domínios.

Para voltar ao começo e a Brecht, talvez, a figura do Dom Helder apareça como aquela que possibilitou o encontro e ao possibilitar isso fez singularidades se organizar, não no sentido de se filiar a uma mesma organização, mas agir segundo uma percepção comum. O legado de Dom Helder possibilitou o início de um enunciado contrário aos enunciados vigentes, o teatro o meio encontrado pela CIA para materializar de outra forma tais questões e assim somar as forças e as frentes de ataques... e o fim? Aí é ficarem atentos aos mais imperceptíveis gestos insurgentes do presente.

Enfim, a peça está em cartaz no SESC Pompéia para quem quiser vivenciar uma experiência arrebatadora. Sempre de quinta a domingo.  Só até o dia 03/07.

sábado, 18 de junho de 2016

MÁQUINA CIDADE!

Como carne fora do açougue
Cidade
Sem dedos
Cem
Máquina
Um homem 
Barro de ferro
Família que observa
Outro soco
Mais um
Rua cheia
De máquina
Cidade 
Derrete
Sangue da carne
Gelado
Inverno sem dedos
Cem
Máquina
Um
Homem barro
Ferro
Barra
De
Ferro
Outro soco
Mais um
Sem dedos


 (por João Fabio Cabral)