sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A poesia viaja pela concretude de SP no canto-poético-encenado da trupe Sinhá Zózima

A poesia viaja pela concretude de SP no canto-poético-encenado da trupe Sinhá Zózima

Num dos mundos sonhados por Einstein há dois tempos: o mecânico, metálico e rígido como um pêndulo, e o corpóreo, que ondula como peixe. O primeiro é inflexível, o segundo se decide à medida que se move. Para muita gente, o tempo mecânico não existe. Ignoram os relógios, comem quando têm fome, fazem amor a qualquer hora do dia, sabem que o tempo avança aos solavancos, que anda com dificuldade, que carrega um grande fardo, mas que voa quando estão felizes. Por outro lado, há aqueles que pensam que seus corpos não existem. Eles vivem de acordo com o tempo mecânico. Levantam-se às sete da manhã. Almoçam ao meio dia e jantam às seis. Trabalham quarenta horas por semana, leem o jornal de domingo no domingo, jogam xadrez nas terças à noite. O desespero advém quando os dois tempos coincidem, ao invés de seguirem cada um seu curso.( SONHOS DE EINSTEIN. de Alan Lightman)

19:36. Chego à estação de metrô Pedro II e sigo em direção ao terminal urbano parque Dom Pedro II, localizado na Av. Estado. Bairro do Brás. Ao atravessar a passarela encontro dois funcionários do terminal. Pergunto-lhes se conhecem um grupo de teatro que faz apresentações ali. “Sim!” Responde um deles. Não satisfeitos em só responder, resolvem me levar até o local de concentração para peça. Ao me aproximar do ponto sou abordado por um rapaz que me entrega um flyer do espetáculo.
19:45. Pego meu livro para ler, mas logo sou tomado pela paisagem do terminal. Meu olhar começa a percorrer arquitetura daquele terminal bem como a observar os transeuntes. Cada pessoa que passa imagino sua história, sua trajetória. De onde vem para aonde vão. Pessoas simples. Pessoas com marcas no corpo de sua história de vida, de suas batalhas diárias. Senhores, senhoras, o “homem comum”. Aquele que de uma forma ou de outra fez, faz e é feito por esta cidade.

19:50. Passa um senhor de cabelo branco, roupa surrada carregando nas costas uma caixa de frutas. Em seguida uma senhora, ela, carregando um caixa de mandioca. Os dois com passos apressados. Cruzam o espaço numa rapidez tremenda como se tivessem correndo para não perder algo. Talvez, o ônibus que os levariam até suas casas. Sucessivamente pessoas e mais pessoas cruzam o espaço em direção a alguma linha, em busca dos seus destinos. Um tanto de pessoas, um tanto de trajetórias. Um tanto de Joãos, de Marias, de José(s), Lindalva(s), um tanto de meninos, meninas, doidos, mulheres.

20:05. Pela catraca vem se aproximando a trupe. De um lado chega o primeiro-personagem-trajetória, de outro chega o segundo. A cada passo seu, uma marca fica pelo chão daquele terminal. O primeiro carrega nos seus pertences e figurino toda sua vida, e os instrumentos para cantá-la e assim seguir, inventando, encenando, humanizando.  As mulheres-personagens se aproximam. Cada uma, uma alegoria da “mulher comum”, da mulher social, com suas histórias singulares e por isso sociais. Uma roda se estabelece e o canto ressoa pelo terminal. Um canto poético, um canto que fura a concretude daquele terminal, fazendo emergir -numa primeira vez, das muitas que viriam a emergir- o espaço da poesia, ou dos tesouros poéticos que muitas vezes a dura realidade encobre. Ao iniciar o canto uma senhora e depois um senhor (que parece ali viver) se aproximam da trupe. Não atoa. No canto poético da trupe eles se veem.

20:30. Seguimos em direção ao embarque. No trajeto sou perguntado, mas não só eu, pelos personagens alegóricos “se seu coração pudesse viajar qual seria seu destino?”. Diversas foram as respostas. Embarcamos. O trajeto daquela noite seria sentido o terminal São Miguel. Linha 3301/10. Entramos juntos. Nós espectadores-viajantes que ali esperavam pelo espetáculo. Mas com nós também embarcaram todas aquelas vidas-destinos-história-saudades-poesia. Eles voltavam para suas casas. Inicia-se com o espetáculo o tempo do trajeto concreto de volta para casa, assim como, o tempo poético de volta para si e o para o mundo do sensível.

O ônibus surgiu - não como ele é hoje - em 1826. Sua função era estabelecer o transporte do centro da cidade para os arredores.  Foi ele e é ainda um dos principais instrumentos coletivo de ligação da cidade. Com a industrialização e, por conseguinte, urbanização, o ônibus ou coletivo como muitos o chamam, ganha uma função fundamental para cidade. Ele se torna um local coletivo. Um local de contato. De encontros e desencontros. De histórias. De trajetos. Não por acaso a escolha da trupe Sinhá Zózima em escolher o ônibus como espaço cênico, como meio. Há uma longa história de performances informais que ocorrem (na tomado do uso) de locais que não foram imaginados arquitetonicamente como teatro. E ao serem tomados esses locais ganham uma nova significância, promovendo deslocamentos que podem vir a servir de material de combate a certas formas estratificadas, fixas, mortas. 

A trupe ao encenar sua peça naquele espaço que é o ônibus me parece promover uma suspensão ao tempo do relógio, da máquina, da função, da realização em proveito de um tempo poético. Um tempo da vida, da contemplação, do sentido, do afeto. Um tempo do sentir. Me parece fazer com que nos voltemos para o humano. Nos confrontando com ele, o que dele estão fazendo.

Se por um lado a cidade se tornou um lugar de passagem, de transito. Na encenação da trupe se torna o cenário de um confronto entre o concreto frio e morto das formas que ela ganhou durante sua construção e a força-devir da poesia do espetáculo que nos desloca, nos afeta, nos transforma. Se o ônibus é um “não-lugar”, ou seja, um espaço despersonalizado, de circulação, que faz com que o cidadão seja só, mas com outros, e que mantenha com esse outro apenas uma relação contratual representada por símbolos- sejam eles um bilhete ou um cartão- com a encenação da trupe ele se torna um lugar, na medida em que todos estão em relação ao que está sendo apresentado. Ele se torna um lugar na exata proporção que escapa da história-funcionalidade para daí permitir a insurgência da troca pela poesia e pelo que ela é afeta. Se nos não-lugares você passa, nesse você até passa, mas não passa ileso, mesmo que seja imperceptível o que aquilo, naquele momento provocou.

O interessante é ver como o coletivo tenta responder a tudo isso no tempo do trajeto físico sem deixar ruir o tempo do sensível. A forma que a trupe encontrou para expressar esse transito, esse conflito. A escolha por personagens alegóricos: a menina, o menino mensageiro (o menino passarinho que a cada carta que entrega é um ninho, nem que seja o ninho o coração do outro) a mulher, o louco. Personagens sociais que não perdem sua humanidade, pelo contrário, exacerba ao reivindicar o sensível que faz parte da constituição do sujeito social.  Ao tornar visível por meio de tais personagens o coletivo que somos a trupe universaliza o particular. Não porque sejamos todos os mesmos em todos os lugares e tempos, mas porque suscita naquele que ver uma aproximação no que se refere ao humano, ao que é o homem. Ou ao que ele não é. Uma espécie, talvez, de alteridade radical.

A forma escolhida pela trupe para expressar o conteúdo que da sua pesquisa ergue-se foi do teatro narrativo. E me parece muito bem acertada na exata medida em que a narrativa rivaliza com a imagem da cidade. Se na narrativa temos um jorro de poesia, na imagem da cidade com o passar do tempo e do trajeto o que temos é cada vez mais uma imagem dura. O que nos faz ter uma dureza do olhar, uma surdez para o mundo. E isso não porque sejamos insensíveis ao mundo, mas porque em muitos momentos é a maneira pela qual encontramos de seguir sem nos deixar desfalecer, morrer totalmente. Ou seja, uma forma de fuga, pois como já diria Espinosa não podemos nos abrir a tudo, já que ao ser afetado por tudo pode não restar nada de nós mesmos. Todavia, tudo isso se torna um paradoxo, pois se por um lado pode ser uma fuga, por outro pode de fato se tornar a violência do insensível. A violência do não enxergar o outro como outro, não ouvir os gritos daqueles que sempre foram a parcela dos excluídos na história do mundo.

O que é instigante perceber com os elementos cênicos, com a forma do espetáculo,  como a trupe consegue potencializar o estado estético, e com isso, suscitar uma espécie de interrupção na linearidade do trajeto. Conseguem tornar o meio potente. Quase como na expressão do Guimarães Rosa que o importante não está nem no começo, nem no fim, mas no meio. E esse meio criado, experimentado cria paisagens outras. Como Durante o percurso somos testemunhas desse grito poético. Cada personagem procura alguém ou algo, a menina procura sua mãe, a mulher seu marido, a moça um namorado, a grávida o futuro, o louco o tempo perdido, o menino mensageiro alguém para entregar sua última carta. Cada um a sua maneira vão deixando rastros para servir de caminho, de ligação. A menina vai deixando suas rosas pelo ônibus na esperança de encontrar sua mãe. Sua ação faz florir do ferro morto do ônibus uma terra, faz o tempo girar em círculo ou fluir ao revés, faz nós espectadores enxergar outra coisa que não mais ó automóvel.  Que sua mãe pode ser a mãe terra da qual somos a cada dia separados.

A sensação é que a trupe no jogo vivo com a dramaturgia, com a encenação, com acaso, fez de sua obra, uma obra aberta, por isso mesmo potente. Aberta porque necessita de quem ver, de quem viaja junto, as pontes necessárias para efetuação do espaço-poético-teatral. Necessita do parceiro-espectador que as brechas deixadas pela dramaturgia seja preenchidas. Não necessariamente significa preencher essas brechas uma busca pela totalização da obra na intenção do entendimento de todo trabalho. Pode significar ao preencher essas brechas, o sentido que cada um ali dar para aquilo que ver que experimentou durante o percurso. Até porque muitos iam ficando pelo caminho, pois chegavam aos seus destinos.  E a obra assim só se fazia, se completava no que ela provocava naquele que vivenciou, mesmo que por pouco tempo aquela experiência. O que interessava era o meio.

Enfim, um espetáculo-transito-deslocamento do espaço físico e de nós mesmos. Um espetáculo que nos convida a olhar não mais pelo filtro do concreto, e sim, pelo sensível que cada vida pode trazer.
Como sempre deixo claro, a escrita acima não necessariamente significa o que seja o espetáculo. Ele é bem mais do que eu aqui tentei expressar. Vale com isso a ida de todos, para assim, poder tirar suas próprias conclusões.

PS: na volta, ainda ganhamos um BIS de músicas as mais belas.


Vão todos!!!!

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