Crédito da foto: Felipe Stucchi (retirada do Google).
Artaud no Teatro Oficina
"Para dar um fim ao juízo de
Deus" de Antonin Artaud está em cartaz no Teatro Oficina aqui em São
Paulo. Um dos mais belos textos de Artaud reencenado por um dos ícones do
teatro brasileiro.
Artaud começa seu livro “O teatro
e seu duplo” da seguinte maneira: “Nunca como neste momento, quando é própria
vida que se vai, se falou tanto da civilização e cultura. E há um estranho
paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da
desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a
vida e que é feita para reger a vida”. Toda questão que se colocava para o
artista francês era acerca do que a cultura ocidental com seu processo
civilizatório estava fazendo com a vida. Ele enxergava nesse processo
civilizatório a ruína da própria vida e a afastamento de sua potência. Percebia
que pouco a pouco os indivíduos eram cortados das suas conexões vivas para se
submeterem a um estilo de vida que os codificavam. Fazendo, assim, da sua vida
e seu teatro um constante combate as segmentarizações, balizas pelos quais o
corpo e a vida passavam.
Para Artaud o homem era
prisioneiro de um mau corpo "que lhe proíbe toda a poesia e a força a
viver sob o irremissível pelourinho das leis, sejam de exército, de polícia, de
igreja, de justiça ou de administração". Não por acaso, ele escreveu a
peça radiofônica que o teatro Oficina encena. Ou seja, a peça não era outra
coisa se não a reivindicação pelo fim do juízo, no sentido do fim do
julgamento, no fim da vida COMO TRIBUNAL. Um combate a todo tipo de
condicionamento inato que pesava sobre o corpo, pois ele sabia que a vida, era
determinada social, histórica, e politicamente.
Na percepção de Artaud se
instaurava na vida uma espécie de "sistema de julgamento", por meio
dessa grande fortaleza que se sustenta sobre os pilares do Estado, da família,
da razão ocidental, da moral cristã etc. Não sendo só um sistema, mas também a
produção de uma espécie de dependência e de rebaixamento vital. Este
"sistema de julgamento" sendo um mecanismo de poder que se abate não
só sobre a consciência, mas também sobre o corpo (o corpo carregando esse
julgamento). Portanto, sobre o corpo incidindo múltiplos mecanismos de
silenciamento, disciplinarização, monitoramento.
Num outro contexto, o filósofo
David Lapoujade retomando os escritos de Nietzsche, Espinosa e Deleuze, entre outros, nos
conclama a pensar “Mesmo nas situações cada vez mais elementares, que exigem
cada vez menos esforço, o corpo não aguenta mais. Tudo se passa como se ele não
pudesse mais agir, não pudesse mais responder ao ato da forma, como se o agente
não tivesse mais controle sobre ele. Os corpos não se formam mais, mas cedem
progressivamente a toda sorte de deformações. Eles não conseguem mais ficar em
pé nem ser atléticos. Eles serpenteiam, se arrastam. Eles gritam, gemem, se
agitam em todas as direções, mas não são mais agidos por atos ou formas. É como
se tocássemos a própria definição do corpo: o corpo é aquele que não aguenta
mais, aquele que não se ergue mais”. Ou seja, há toda uma ação para que o corpo
não experimente-se, vivenciando assim, sua potência, mas que ele se adeque, a
uma certa forma, a um certo estilo. Voltando a Artaud podemos dizer que o corpo
sai de um estado de potência (que implica criar possíveis e esgotá-los) para um
estado de cansaço (que só responde aos estímulos dados, que está sempre a
correr atrás de algo... A cumprir tarefas.). Ele perde aquilo que é a sua maior
força, isto é, a capacidade de afetar e ser afetado e nessa relação, a
capacidade de criar fora do instituído. Ele cansa e ao cansar ele adere.
A vida através do corpo se torna
o alvo. E não é de agora, mas os dispositivos usados na contemporaneidade se
diferem em muito de outros tempos. E é aí que Penso ter perpassado a encenação
do teatro Oficina. Ou seja, ainda toda (no meu olhar) direcionada por uma
critica à moral cristã e seus adjacentes, numa tentativa de profanação desse
corpo e que faz muito sentido ainda hoje, entretanto, talvez, devêssemos olhar,
para os novos mecanismos de aparelhamento e controle da vida e, portanto, dos
corpos. Olhar para toda produção de saber da medicina que permite por meio dela
justificar diversas intervenções sobre o corpo humano e o direcionamento para o
que eles caracterizam de "boa vida". O filósofo francês Michel Foucault chamou
atenção para a passagem do “Estado territorial” ao “Estado de população”, isto
é, a passagem de uma forma de exercício de poder centrado num corpo máquina
para incidir sobre o corpo espécie, no corpo como suporte dos processos
biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível da saúde, a
duração da vida. Tais processos são assumidos mediante toda uma série de
intervenções e controle reguladores, através de uma biopolítica da população.
Na peça radiofônica Artaud chega a
falar (profetizou um futuro próximo?) dos micróbios em substituição a Deus. Que
poderia ser pensado como toda produção de doenças e curas sobre o corpo. Ou
mesmo dos investimentos do exército americano (na peça ele cita) sobre as
crianças e seu esperma. Na tentativa de descobrir o "melhor
funcionamento" para o corpo, desde que adestrado, docilizado numa
tentativa de ampliar suas aptidões e espoliar suas forças, no crescimento
paralelo de sua utilidade. Nesse sentido, o que se verifica é a constituição de
um corpo que funciona, um corpo organismo que funciona para o trabalho, para
guerra, que funciona conforme uma máquina produtiva. Para Artaud a organização
do corpo já é uma hierarquia de juízo, de condenação.
Estou tentando pensar através da
encenação do espetáculo, como a obra de Artaud ilumina possibilidades de
enxergar a vida e o corpo como alvo da política moderna enquanto forma e
estilo. Retomando Foucault podemos verificar ao final de “História da sexualidade
vol.1: a vontade de saber”, a sintetização do processo através do qual no
início da modernidade, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos e
cálculos do poder estatal, transformando a política em biopolítica: "o
homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo
e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em
cuja a política, sua vida de ser vivo está em questão".
Artaud, talvez, dissesse que é a
vida-corpo ganhando carne, ganhando forma, mas não a forma que ele desejaria,
mas a forma que o "sistema de julgamento", através dos seus pilares imprimiu.
Eis que nos diz Artaud em "Para dar fim ao juízo de Deus": "Para
existir basta abandonar ao ser, mas para viver é preciso ser alguém e para ser
alguém é preciso ter um OSSO, é preciso não ter medo de mostrar o osso e
arriscar-se perder a carne".
É como se ele nos chamasse a
resistir abandonando essa carne que delineia uma certa forma. Uma forma escrava
de si e do outro. Na encenação do Oficina tem uma passagem muito poética e
esclarecedora que se assemelha a esse ato. O momento dos corpos se vestindo e
se conformando a um corpo imune, a uma corpo órgão. Tal ação poética me fez
recordar o livro do Roberto Esposito "Bios" e suas várias páginas
destinadas "A carne". E principalmente na passagem que segue “Quero
dizer que todas as vezes que o corpo foi pensado em termos políticos, ou a
política em termos de corpo, produziu-se sempre um curto-circuito imunitário
destinado a fechar o 'corpo político' sobre si próprio e dentro de si mesmo em
oposição ao seu exterior".
O que o autor italiano verifica
acima citado é o inverso do que Artaud vai propor para vida, vai reivindicar
com seu teatro. Principalmente com o teatro e seu duplo. Permitindo-nos, assim,
alargar o conceito de política, e entender a política como um ato de
experimentação, como um ato ético e estético como queria Gilles Deleuze e Felix
Guattari. Ética porque é potência e promove alianças, requer com o outro essa
experimentação e efetuação. Estética porque produz formas novas de estar no
mundo. Portanto, seguindo a lógica dos autores, devemos pensar via Artaud, em oposição
ao "sistema de julgamento" o "sistema da crueldade" que não
tem nada a ver com o entendimento de crueldade hoje, mas com o corpo a corpo,
com embate dos corpos que não permite sair imune ou ileso da batalha travada
por essas vivencias e experimentos. Para abertura das forças múltiplas presente
no outro. E com isso para abertura de possíveis.
Talvez possamos, nesse sentido,
pensar Artaud via oficina como a resistência a investimento biopolítico e seu
processo de imunização do corpo físico e político na medida em que “Artaud-Oficna-Zé”
proclamam um embate dos corpos, uma abertura para o exterior, e um confronto
com o fora que nos constitui. Um corpo-sem-órgãos como ele queria “Se quiserem,
podem meter-me numa camisa de força, mas não existe coisa mais inútil que um
órgão. Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então terão libertado dos
seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. Então poderão
ensiná-los a dançar às avessas...". Tem algo em Artaud com sua arte,
especificamente aqui o teatro, que nos possibilita pensar o presente e
possibilidades de resistência (ou como gosta de dizer Zé Celso; Re-existência). O que o teatro do artesão do
corpo sem órgãos nos faz perceber, talvez, é que a força política (de ação) do
teatro na contemporaneidade estaria no fato mesmo de interromper certa
apreensão da realidade e menos numa representação da mesma ou em reproduzir uma
forma pautada na transmissão.
Todavia, tudo isso tem que se ser
verificado no presente do combate, nas formas (ferramentas) possíveis
encontradas naquele momento para efetuação de algo que possa vir a ser ou na
própria constituição dos possíveis, e, portanto, das formas-ferramentas para
efetuação de algo novo. A força do teatro pode emergir nessas suas direções,
por um lado, buscando traçar novas conexões ao que já existe, permitindo novos
sentidos. Por outro, efetuando novos possíveis à medida que experimenta.
Vale muito ver a peça. Último fim
de semana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário