sexta-feira, 24 de junho de 2016

O avesso do claustro CIA do Tijolo: ou como eu vivenciei



Brecht em um dos seus últimos textos insistia que “o mundo de hoje não pode ser descrito aos homens de hoje a não ser que lhes seja apresentado como transformável” nesse sentido, podemos dizer que para o autor alemão o mundo não cessa de se transformar e de nos transformar. Brecht também dizia que triste era o mundo que precisava de heróis. No entanto, talvez devêssemos pensar que algumas são as figuras, na barbárie, que tornam suas vidas uma obra de resistência, um ato de coragem e que em torno dela se agrupam, “como num cacho de uva”, um monte. E que nesse agrupamento insurge contra uma lógica de mundo, contra um tempo sombrio. Pressionando o mundo ali onde ele mais se conserva por meio dos mais diversos dispositivos.

Uma dessas figuras me foi apresentada hoje de forma poética; como um grande poema que nos atravessa e nos lança para fora do trem em movimento. Possibilitando assim o fazer ver e sentir fora do trilho do tempo e espaço, numa espécie de extemporaneidade. De certo que tudo isso não é de forma alguma um ato fácil, apaziguado, mas um ato cruel por nos rasgar e fazer vibrar aquilo que no nosso corpo a muito tinha sido e vem sendo capturado e tornado organismo como diria outro gênio do teatro Antonin Artaud. Retardando assim, percepções outras do mundo, da vida e, por conseguinte, da instituição de um mundo outro, vida outra.

A figura a qual me refiro se chamou Dom Helder. A Companhia responsável pela forma poética se chama CIA do tijolo. O espetáculo: O Avesso do Claustro.
O teórico Bernard Dort no seu livro “o teatro e a realidade” chama atenção para o fato de como “evocando o mundo em que vivemos, o teatro estará à altura de propor a seus espectadores imagens de nossa vida social suficientemente fortes para que possam, se não concorrer com as que são fornecidas sem descanso pelas revistas, pelo cinema e sobretudo pela televisão, ao menos proporcionar prazer e suscitar uma reflexão totalmente diversa”. Parece-me está na poesia (não só com o gênero literário) a produção dessas imagens. E me parece que a encenação da obra aqui em questão proporciona tal prazer e suscita tais reflexões.

O palco se torna um grande canteiro de obras. Onde tudo se torna ferramenta para materialização cênica. Onde o jogo é vivo. Onde a teatralidade pede passagem e exige autonomia em relação ao discurso, mas que por conta disso torna o discurso ainda mais potente, uma arma cortante. A forma encontrada pelo CIA do Tijolo para encenar o legado de Dom Helder permite-nos vivenciar a força que pode ser o teatro. Esse lugar heterotópico como dizia Michel Foucault, ser o teatro; esse não lugar dentro do lugar, mas que cria avessos, produzem outros tempos, imagens e que, por isso mesmo, age, mesmo forma pequena, sobre a realidade, o mundo. Se num primeiro momento não se enxerga os efeitos, eles passam imperceptíveis, em outro, isto pode emergir com uma força até então inimagináveis. 

Acompanhar a encenação do espetáculo é perceber tempos e espaços conectando-se. Trajetórias se encontrando, não no mesmo tempo e espaço da realidade, mas possível no tempo espaço do teatro, fazendo com que se conceba plano de percepções. O que isso quer dizer; que as trajetórias envolvidas, cruzadas pelo tempo mundo, podem de alguma maneira gerar percepções comuns sobre o mundo na medida em que se verificam atos de resistências, de combate à barbárie que surgem e se perpetua em tempos e espaços os mais diferentes. O que nos faltam, muitos ativistas acreditam, é uma percepção partilhada da situação, sem essa ligadura, os gestos se apagam no nada e sem deixar vestígios.

Na peça a gente acompanha como bem explicitado no seu programa, “a trajetória de três personagens cheios de questionamentos e perplexidades diante de nosso momento histórico e atual. Três figuras que perambulam pelo centro de três grandes cidades brasileiras: Um pesquisador em visita ao recife, uma moradora que caminha pelas ruas da cidade de São Paulo e uma cozinheira que vive aos pés do Cristo Redentor se encontram para ouvir de novo a voz do Bispo Vermelho, ouvir seus poemas e histórias, dialogar com ele, concordar com ele e por vezes questiona-lo”. E é no encontro desses três e suas relações com Dom Helder, que verificamos a produção de uma percepção partilhada da situação. A produção de uma inteligência partilhada, o posicionamento de algumas peças, dentre elas, a de uma linguagem que exprime, ao mesmo tempo, a condição que nos é apresentada e o possível que é a fissura.

No programa da peça a CIA verificamos o seguinte trecho: “diante desse encontro inusitado no espaço e no tempo, só possível no teatro, atores, personagens, palco e plateia buscam reaprender a imaginar novos mundos possíveis em tempos obscuros”. Ou seja, o teatro ao permitir tal encontro faz ver a possibilidade de se criar contra informações à profusão cotidiana de informações, que molda nossa apreensão de um mundo. Desse modo podemos retomar Foucault quando ele nos fala do teatro como um contra-espaço, um espaço fomentador de corpos outros, subjetividades outras, relações outras. São espaços que evidenciam vácuos, fissuras, brechas no sistema como todo.
Isso implica seguindo o pensamento de outro filósofo francês, a saber, Jacques Rancière, em disposições de corpos, em recortes de espaços e tempos singulares que definem maneira de ser, juntos ou separados, na frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe. Isto é, o teatro mostra-se como uma forma da constituição estética – da constituição sensível- da coletividade. A maneira como a comunidade ocupa o lugar e o tempo, como o corpo em ato oposto aos aparatos disponibilizados por uma logica desumanizadora- no sentido de bloquear, percepções, gestos e atitudes que precede a política engendrada por tal lógica - permite pensar a arte e a política como forma de dissenso, “operações de reconfiguração da experiência comum do sensível”.

Nesse sentido, Imaginar, o ato de imaginar possíveis se torna urgente. A imaginação diante do choque da realidade da qual fazemos parte pode nos despertar, tirar-nos do entorpecimento de certa “verdade” e dos discursos que a produz. O teatro mais do que imitar a realidade, emprega-a para violentar as defesas de seu público. Já dizia Erwin Piscator “a realidade é sempre o melhor teatro”. No espetáculo a cena do integralista é afirmação a tudo isso.  Seu discurso envolto à defesa de um país “justo”, um país com ordem e progresso, um país que vota pelos bons costumes, pela moral, pelo fim dos conflitos, um país sem contradição (pelo menos como eles entendem), sem oposição, sem comunista. Um país que vota sim por tudo isso. Um país que agora deve deixar as diferenças de lado e seguir em frente, como aparece na propaganda do PSDB nos tempos atuais. Trechos do manifesto integralista brasileiro são projetados ao fundo no momento do discurso. Segue trechos retirados do manifesto “Deus dirige os destinos dos povos. O Homem deve praticar sobre a terra as virtudes que o elevam e o aperfeiçoam. O homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da Família, da Pátria e da Sociedade. Vale pelo estudo, pela inteligência, pela honestidade, pelo progresso nas ciências, nas artes, na capacidade técnica, tendo por fim o bem-estar da Nação e o elevamento moral das pessoas. (...) Os homens e as classes, pois, podem e devem viver em harmonia. É possível ao mais modesto operário galgar uma elevada posição financeira ou intelectual. Cumpre que cada um se eleve segundo sua vocação”.

Isso nos faz tomar como urgente a criação de contra narrativas, a produção da partilha do sensível que embaralha as disposições sociais com suas identidades fixas a priori. Que criam sistemas das formas a priori determinando o que se dá a sentir. Retomando Rancière “a política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidades para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo”.  As convulsões contemporâneas exigem, sem dúvida, uma modelização mais voltada para o futuro e a emergência de novas práticas sociais e estéticas em todos os domínios.

Para voltar ao começo e a Brecht, talvez, a figura do Dom Helder apareça como aquela que possibilitou o encontro e ao possibilitar isso fez singularidades se organizar, não no sentido de se filiar a uma mesma organização, mas agir segundo uma percepção comum. O legado de Dom Helder possibilitou o início de um enunciado contrário aos enunciados vigentes, o teatro o meio encontrado pela CIA para materializar de outra forma tais questões e assim somar as forças e as frentes de ataques... e o fim? Aí é ficarem atentos aos mais imperceptíveis gestos insurgentes do presente.

Enfim, a peça está em cartaz no SESC Pompéia para quem quiser vivenciar uma experiência arrebatadora. Sempre de quinta a domingo.  Só até o dia 03/07.

sábado, 18 de junho de 2016

MÁQUINA CIDADE!

Como carne fora do açougue
Cidade
Sem dedos
Cem
Máquina
Um homem 
Barro de ferro
Família que observa
Outro soco
Mais um
Rua cheia
De máquina
Cidade 
Derrete
Sangue da carne
Gelado
Inverno sem dedos
Cem
Máquina
Um
Homem barro
Ferro
Barra
De
Ferro
Outro soco
Mais um
Sem dedos


 (por João Fabio Cabral)