terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

SEVERINA DA MORTE À VIDA: um grito poético, uma vida de luta/luto

                                                   Foto: André Piruka (retirada do google)

SEVERINA DA MORTE À VIDA: um grito poético uma vida de luta/luto.

O meu nome é Severino e não tenho outro de pia.
Mas como Severino e Santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria.
Mas como a muitos Severinos com mães chamadas Marias, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.
Mas isso ainda é pouco, há muitos na freguesia por conta de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o senhor mais antigo dessa sesmaria.
Como então dizer quem fala ora vossa senhoria, vejamos, é o Severino da Maria do finado Zacarias lá da terra massacrada chamada PERIFERIA.
Mas isso ainda diz pouco se ao menos mais cinco havia com nomes de Severinos, filhos de tantas Marias, mulheres de outros tantos Zacarias, vivendo nessa terra magra e pobre em que eu vivia.
Somo muitos Severinos iguais em tudo na vida, na mesma cabeça grande que a custo se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, com a mesma pela NEGRA e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta.
E se somos muitos Severinos iguais em tudo na vida morremos de morte igual, a mesma morte severina, que é a morte que se morre de velhice antes dos trintas, de POLÍCIA antes dos vinte e de fome um pouco por dia...

O teatro não está morto, pelo contrário, está muito vivo, mas isso desde que não seja o local de culto à língua maior, das narrativas hegemônicas com sua constância cristalizadora homogênea-individualista, sua construção social de ideias e valores estéticos. Ele não está morto na exata medida em que não se torne um espaço objetivante de uma lógica dominante, ou seja, de reprodução do modelo capitalista. No entanto, para que sua vida pulse na potência que é necessária ao ato revolucionário (e não a sobrevivência) é preciso criar espaços adequados para produção de conteúdos revolucionários e, com isso, formas (idem) que melhor exprimam a força contida no mesmo. Deste modo, urge ao teatro uma volta para sua dimensão de uma arte de esquerda que possui uma realidade extensiva a todas as suas definições, e que, sem prejulgamento de nenhum tipo, é o lugar de CONGREGAÇÃO, ponto de partida para uma luta. Por este ângulo, o teatro de esquerda é aquele que produz artistas de esquerda, mas mais do que isso, é aquele fomenta uma ação benfazeja, uma vez “que ajuda a congregar, alinha, unifica e dá um nome à luta”. Um teatro que convoca um público por vir no sentido de ser erigido com ele e assim seguir na luta contra tudo e todos que o jogam na vala do esquecimento, da precarização, da morte. E quando da morte parte é para ser o espaço de um testemunho que em torno dele se juntarão aqueles que têm na vida o testemunho dela e aqueles que simbólico e materialmente morre a cada instante. 

Neste sentido, parece ser o que faz o GRUPO CLARIÔ DE TEATRO ao se instaurar com seu espaço na periferia da maior metrópole da América Latina, especificamente, na divisa entre a cidade de São Paulo com a de Taboão da Serra. Um teatro de esquerda feito por um povo-artista que sempre esteve no processo histórico na condição marginalizada e à esquerda do poder soberano vigente. E que, portanto, carrega na própria carne o peso de um processo histórico sangrento, assassino, mas também a força da resistência. A prova poética disso pode ser verificada na sua mais nova encenação: SEVERINA DA MORTE À VIDA. Um trabalho de urdidura sensível poética, ao mesmo tempo de uma força severa e, por isso, perturbadora em relação a degradação da grande parcela de mulheres, homens e crianças promovida pelo sistema em voga (capitalista) na sua forma de produção material, social e subjetiva. Todavia, o espetáculo não se resume à crítica de tal sistema, mas também lança olhares e nos faz pensar acerca das contradições presentes nas lutas armadas (de doutrina autoritária) e no que elas podem vir a ser, ou mesmo em relação a uma ideia de revolução que vai chegar e que está lá no horizonte longínquo ao invés de termos em mente que tal revolução (insurreição) é imprescindível no aqui agora e permanente. Se ela não é do ditame do macro por contingências diversas a que devemos observar com atenção, ela é da ordem do micro com sua capacidade inventiva, solidária. Ou seja, o espetáculo esbugalha os opostos na sua forma totalitária; seja na sua formação econômica ou política ou nas duas ao mesmo tempo. O que evidencia a importância do meio - não como neutralidade, ausência de posicionamento - na linha que separa os opostos (complementares?) e que corre a vida. O meio como radicalidade, potência constituinte que não se deixa reduzir a transcendência do poder constituído. Colocando, desse modo, abaixo a apologia pós moderna, neoliberal do fim da transformação radical da sociedade e da política.  

Ora, a preocupação do espetáculo é com a vida, contudo, não se trata de qualquer vida, isto é, da “vida-maior” (hegemônica) com seus padrões majoritários condicionantes. Mas das “vidas menores” (e aqui não é no sentido valorativo de ter menos importância ou estatístico, e sim, de potência porque foge do... e faz fugir o padrão) presentes no mundo e que por conta disso são atravessadas pela linha “dura–segmentarizante” do Estado (seja na forma do Estado totalitário ou do Estado liberal com forte interferência do mercado como é o que vigora na realidade brasileira e mundial) fazendo com que tais vidas sejam delineadas ao seu modelo e tornem-se minorias quando em relação aos direitos. Pois não se pode esquecer que nenhuma vida ou se quiser o “ser” da vida está fora das operações do poder. Significando dessa maneira, que o “ser” da vida é ele mesmo constituído por meios seletivos; como resultado dos mecanismos do poder.

No espetáculo de maneiras diversas evidencia-se tal processo de precarização da vida e com ela a dominação. A trajetória de Severino (alegoria que dá nome ao espetáculo) é o caminhar de um povo subjugado e entregue a uma formação que se desenvolveu historicamente a fim de maximizar a precariedade para alguns e minimizar para outros. Primeiro Severino é expulso do seu lugar, depois ele vai “trocando” (de forma forçosa e, portanto, sem opção) seus meios de produção (suas ferramentas de trabalho) por aquilo que deveria em tese ser comum a todos, a saber: água, comida. Severino, então, por um lado, se vê sem seus meios de produção e forçado a tornar sua força de trabalho uma mercadoria e, por outro, expulso da sua terra, entendido não como propriedade privada, mas da qualidade do pertencimento, do comum, do saber de onde veio, da vida comunitária. Sem suas raízes que servem de orientação na constituição de novos territórios, de novos povoamentos da terra que não os ofertados pelo modelo capitalista.  
  
É tudo que o capitalismo não quer. Povoamentos que divirjam do seu modelo. No entanto, há múltiplos povos (cheios de Severinas e Severinos) minoritários (de novo não se trata de estatística) reivindicando uma outra modalidade de terra que não a de se apropriar pela lógica privativa, pois da terra usa-se de tudo, mas não se é o proprietário dela. Está aí um jeito de ocupar a terra sem ser pela lógica do capital. Todavia, essas minorias não tem o direito e por vezes nem à FALA. E por conta disso não conseguem se manifestar, expressar nos códigos vigentes (visto que estão atrelados a uma linguagem própria e a direitos que só os beneficiam), não restando outra coisa senão o GRITO.

O grito pode ser o agregador de uma luta, de uma forma de organização que produz fora do modelo e que também se manifesta numa estética fora dele, que cria narrativas monstruosas que aparecem para renegar toda normalidade, para declarar miserável a obediência. Para voltar a participar da ágora e poder falar por si e não se deixar falar por ninguém ou falar por alguém, e assim, ter o direito sobre a terra, sobre a forma como ocupá-la ou ser sobre ela. Durante o espetáculo Severino se vê diante de duas frentes; cada uma a sua maneira declina o entendimento do público, do espaço público, do homem público, da vida pública, do compor junto preservando sua singularidade. Por um lado a perda ocorre pela forma de exploração do sistema capitalista e pela sua lógica individualista corroendo o caráter e minando qualquer forma de solidariedade, por outro, via a um nós que se sobrepõe sobre o UM sem o deixar ser. Beirando assim cair num totalitarismo com sua forma de dominação radical; não se limitando a destruir as capacidades políticas do homem, isolando-a em relação à vida pública, mas tendendo a destruir os próprios grupos e instituições que formam o tecido das relações privada do homem, tornando-o estranho assim ao mundo e privando-o até de seu próprio eu.

Uma das cenas que sintetiza de forma poética a discussão que até agora venho tentando elaborar é do enterro de Severino quando o revolucionário surge e proíbe Severina a (outra personagem que durante todo espetáculo não fala nada) enterre-o provocando nela o grito e a revolta. Aliás, tal cena muito me lembrou da passagem de Antígona quando ela enterra o irmão para que não seja comido pelos bichos, mas ao fazer isso irrompe contra o poder do seu irmão que é o representante de poder superior. Em Severina a insurgência é contra tudo aquilo que reduz o ser a mero objeto. É contra os poderes que se apropriaram da terra e fizeram dela um produto seu.

Mas agora gostaria de retomar o começo quando me referi a uma estética de esquerda, de um teatro revolucionário porque não da utilização de procedimentos e estéticas da língua maior.

O teatro contemporâneo tem se notabilizado pelo seu caráter experimental, fragmentado - nesse ponto a justificativa estando na impossibilidade de narrativas coesas visto que a própria realidade passa por processos de transformações radicais. Não obstante isso tem levado (claro tem as exceções, que fique bem claro!) a construções superficiais, a presença de discursos de tipos os mais variados e até excludentes numa mesma peça, sem atentar para ambiguidade do processo, o que faz o projeto espetáculo cair em maniqueísmo às avessas ou quando o falar de tudo é falar de nada. Mas, enfim, aqui não é o espaço para aprofundar tal discussão.

Em paralelo a essas propostas tem se verificado a constituição, a continuidade ou mesmo a retomada de um teatro com posicionamento político muito claro, estendendo (e guardando as características próprias de cada uma) tanto o conceito de política quanto de arte ao domínio comum da práxis humana: “a obra artística carrega qualidades que afetam a percepção do mundo e fatos da política atingem as mais diferentes esferas da sociedade, o que possibilita a tendência de aproximação destas duas áreas distintas, criando vínculo e deixando-se influenciar mutuamente”. (CHAIA, 2007, p.14)

Nessa linha a teatralidade engendrada tem explodido com a teatralidade do teatro burguês, isto é, com seus enunciados formais bem como temáticos. Além de enveredar por espaços não convencionais, numa tentativa de encontrar formas que dê conta de falar da sociedade sem partir de uma convenção cristalizada dada a priori. Ou dito de outro modo, sem partir das convenções de um teatro que está submetido a uma língua maior. O que também exige um outro tipo de organização no que se refere ao processo de construção do trabalho. Pois a arte não acontece deslocada do sistema de produção. Qualquer fabricação, ação, acontecimento passa necessariamente, pela organização das forças produtivas. Por “sistema produtivo”, aqui, se adota uma concepção ampla. Mais do que a produção de sujeitos e objetos, é um conceito radicalmente construtivista. O sistema produtivo é o que cria o próprio mundo, natureza e cultura; é subjetividade em estado fluido, dinâmico, disforme.

Se instaura uma outra lógica o que permite ao grupo trabalhar numa outra chave, logo, estabelecer uma construção mais coletiva, sem com isso, significar a diluição das responsabilidade que cada um carrega no momento do processo de criação. E isto fica bem claro no trabalho do CLARIÔ, pelo menos, nessa fase aonde a obra encontra o público. E a prova afirmativa disso está no programa da peça: nos relatos que chamam atenção para essa construção e ao final da peça com apresentação de cada membro do grupo.

O fato é que esse tipo de construção vai implicar em escolhas estéticas por parte da encenação para que a peça fale da sociedade para sociedade, mostre o homem inserido nela. A dificuldade pode está nas escolhas dos procedimentos, dos estilos, na busca pela teatralidade que melhor sirva ao propósito do coletivo. No caso do trabalho aqui analisado as escolhas elevaram o mesmo a um nível muito sensível, a uma construção cênica aberta porque da utilização de algumas referências históricas e linguagens artísticas, um ajuntamento, um ENSEMBLE como cunhado por Brecht. Sem deixar de comentar a corporeidade; um retorno ao corpo ancestral como um corpo em conexão com a terra, com a maneira de ser com ela e nela. Imprimindo ainda mais contundência ao projeto, pois se trata de um corpo fora do modelo civilizatório na sua forma disciplinar domesticadora produtiva.  

Outro fator, não menos importante, foi em relação à obra de João Cabral de Melo Neto. A forma como o grupo lidou com a mesma, ou seja, numa espécie de duplo posicionamento diante dela, por um lado, respeitando-a e tendo noção da sua grandeza, mas, por outro, sabendo da necessidade da sua atualização para uma criação dramatúrgica coerente com o espaço-tempo do qual faz parte e um estado cênico provocador. 

Por fim, a morte que é o tema muito presente no espetáculo pode servir testemunho e ser através dele a força agregadora, a vida por vir, a raiz para novos povoamentos. O teatro como um grito, um testemunho, um meio para... 

PS: o trabalho pode ser pensado a partir de várias entradas, o que significa esse texto ser mais uma análise das possíveis. O texto é a partir do trabalho, do que ele faz pensar, portanto, nunca querendo ser um ato de ilustração do trabalho, contudo, buscando respeitar em muito a criação, o coletivo.

Logo volta!!!!


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA: uma exposição cênica do corpo social


DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA: uma exposição cênica do corpo social

Está em cartaz no Teatro de Arena Eugênio Kusnet o espetáculo DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA do dramaturgo brasileiro Plinio Marcos e realização da CIA. Teatroendoscópico de Santo André: Com Daniel Gregório (na noite de sexta-feira dia 17/02 vi com Ícaro Rodriguês substituindo o mesmo) e Glauber Pereira. Quem assina a direção é Flávio Marin.

A peça foi escrita pelo Plínio Marcos em 1966 e de lá para cá muita coisa mudou no que se refere ao mundo e, principalmente, ao Brasil, para não falar de São Paulo. Entretanto, isso não quer dizer que a peça tenha se tornado obsoleta, pelo contrário, tornou-se uma exposição cênica apurada do corpo social, se não pela semelhança com os dias atuais, pelo seu papel de um arquivo fotográfico poético (vou chamar assim) que nos ajuda a descortinar as mudanças ocorridas tanto na constituição do “individuo marginal” e excluído quanto na conformação da sociedade atual. Os personagens (Paco e Tonho) que o dramaturgo criou através de uma observação polida da realidade social e por meio da sua escrita representavam tipos sociais, dito de outra forma, eram representações sociais, descrições parciais de uma dada realidade. Mas que apesar disso adequadas para o objetivo proposto, a saber, o de falar sobre a sociedade. Ou se quiser, o de falar sobre aqueles que são excluídos, marginalizados pela mesma. Permitindo, desse modo, inferir o todo que é a sociedade.

Parece-me que o Plinio Marcos na sua dramaturgia não deixa barato e não faz concessões ao criar os dois. Pois da sua escrita-fala-boca o que se chega e se escuta são palavras cortantes que ajudam na construção de personagens-carnes, corpos-vida e não espectros de uma realidade. Basta ver a intensidade que cada personagem exige dos artistas para o êxito da sua corporificação. Um trabalho árduo, um trabalho de escultor do ator para que não caia numa dramatização clichê e nem fique aquém da força que cada personagem-corpo-carne suscita. Um trabalho ficcional que não é um mero colocar-se no lugar do outro, mas o de experimentar forças abrir-se a outros mundos, a outras intensidades de vida.  

Os personagens do Plinio Marcos, me parece, estão sempre à margem de certo circuito estabelecido e solicitado por uma certa (con)formação social. Um corpo marginalizado, um “corpo-monstro” que a sociedade (que não é um mero aglomerado de indivíduos, mas uma ordem social, uma formação que sobrevém aos indivíduos os forçando a auto regulação, portanto, influenciando em seu desenvolvimento e percepção) com suas normas e valores estranha por não se assemelhar ao seu “corpo-orgânico”, ou melhor, ao seu ideal de corpo (e aqui tanto o individual como o social). Por isso, uma sociedade punitiva, que encontra na vigilância e punição formas de adestramento e captura ou de exclusão total. Todavia, já nos diz um certo filósofo francês, o poder não apenas reprime, mas cria realidades e a forma como ele se exerce deixa de ser apenas disciplinar para se tornar também de um sistema de controle desprovido de um centro único de organização e também articulado em redes de visibilidade absoluta e comunicação virtual imediata. A sociedade de controle ressaltou ainda mais a centralidade dos fenômenos vitais da população como alvo constante e insistente de investimentos, produções e controles, “que na maioria das vezes, são inclusive desejados pelos próprios cidadãos”. (DUARTE, 2010, p. 207). Ou seja, uma operação tanto no sentido totalizante – com que todos concordam – quanto no sentido individualizante.

E nesse sentido é interessante perceber como as mudanças econômicas -sociais, mesmo que num período curto de tempo, produziram a necessidade de se olhar para esses personagens de forma diferente, ou seja, tentando averiguar no presente  a sua materialização, melhor dizendo, o que seria a sua atualização. Pois a sensação é de que aqueles personagens que chamei de “personagens-carnes” que contém em si uma violência intensiva e que faz fremir a própria estrutura social no que tange ao modo como se coloca no mundo, na atualidade se tornaram outra coisa. Talvez isso possa ser comprovado na dramaturgia contemporânea com personagens de outra ordem e na ausência deles. E não quero dizer aqui que isso é ruim ou bom, mas apenas atentar para o fato de que tal manobra resulta de um processo histórico que implica em novas formas de representação da realidade. Implica em o teatro olhar para sua realidade. Todavia, “a arte conserva, é a única coisa no mundo que conserva, conserva e si conserva em si”, mas não à maneira da indústria que “acrescenta substancias para fazer a coisa durar” (DELEUZE, 1992, p. 193), e sim, por torna-se independente do seu modelo, do seu criador, para fazer emergir e conservar sensações, bloco de percepções e afetos que age sobre nós, fazendo com que nos deslocamos do ponto que nos encontramos.

A obra nessa intensidade não fica datada. Pelo contrário, provoca deslocamento, estranhamento, desnaturaliza o que comumente é tomado como natural. Ela converte-se numa arma poética intensiva. E nada era mais caro ao Plinio Marcos (penso) que sua obra ser uma arma poética contra um modelo social de produção de seres excluídos socialmente. Não obstante, se lá eles estavam excluídos socialmente e isso é evidente na peça, cá eles continuam excluídos, mas agora com um novo estatuto; o de incluído-excluído. Ou seja, são incluídos graças ao processo de regulação das condutas, o que quer dizer tornarem-se escravos de si do outros, assujeitados. E também excluídos por ainda continuarem na categoria do anormal. Sua inclusão, portanto, é pela lógica da doença social, que dizer, deve ser cuidado para não se alastrar como vírus, e assim, chegar a provocar distúrbios, o que permite colocar tal ação na categoria de prevenção, de deixar morrer e não mais de matar ou colocar numa NAU. Claro, quando isso for possível, pois quando não for o estado de exceção está aí para corrigir. Pois se tem uma coisa que esses mecanismos dominantes não conseguem prever e controlar de maneira definitiva são as insurreições contra essas formas de poder, visto que elas podem emergir de qualquer lugar a qualquer momento.

A leitura feita aqui da obra do Plinio Marcos não se pretende verossímil à mesma, mas a utiliza como um arquivo poético para pensar o presente. Tentando encontrar ecos entre a obra e a realidade vigente sem com isso reduzir a obra a uma mera cópia da realidade, pelo contrário, o que a mesma suscita é o ato de estranhar a realidade. A força dela estando muito mais (imagino) na comparação por conta da sua duração no tempo do que no figurativismo.

Tanto é que a encenação que tive o privilégio de presenciar se utiliza de procedimentos do teatro épico para levar para o palco e desse modo falar da sociedade. Vale a pena lembrar que a obra dramatúrgica tem como forma o drama, mas o espetáculo ao ser encenado pelo coletivo torna-se épico.  Isto de cara coloca a questão da tensão entre a escrita e sua realização cênica. E mais, entre enunciado do conteúdo e da forma. O que nos faz lembrar que a forma dramática está vinculada a história e por isso mesmo necessita ser colocada em perspectiva e desse modo aferir sobre sua eficácia na atualidade. A encenação ao optar por procedimentos épicos escancara a contradição entre convenções estáveis e formas novas que as modificam e que são necessárias para falar sobre o mundo de hoje para gente de hoje. Trazendo para cena, no meu entendimento, algo da ordem do inacabado porque do vivo, do potente.

Se na peça a relação é intersubjetiva, próprio da forma dramática, na encenação ela converte-se em algo próximo ao épico posto que ela se abre para o mundo, rompe com a construção rigorosa da ação, amplia o espetáculo para além do diálogo, fazendo com que as condicionantes sociais fiquem mais evidentes. Uma das maneiras que o encenador encontrou para executar tal modificação foi a de colocar os personagens direcionando suas falas cortantes ao público e não ao outro. Rompendo assim com qualquer tipo de ilusionismo, de presente absoluto. O efeito provocado por tal procedimento é o de um corpo falado, isto é, de uma fala que vem vindo e faz aquele corpo falar, ser o emissor, mas não o criador dela. Um reprodutor de uma ordem.

O primeiro ato com seus quatro quadros e parte do segundo ato vão nessa direção. A relação de força presente na peça fica na forma encontrada pela encenação mais evidente. O pêndulo não para.  Cada um em tempos entrecortados assume essa fala que vem vindo acarretando o domínio hora sobre um, hora sobre o outro. O que na forma dramática se caracteriza como conflito e prende o espectador, na encenação ganha contorno de conflito social porque o sujeito é fruto das relações sociais e reforça seu caráter teatral e, portanto, anti-ilusionista.  É só na última cena que o confronto entre os dois acontece. E aí fica mais evidente como discurso autoritário opera na forma totalizante ao mesmo tempo que individualiza. Isto é, imprime uma marca, determina uma identidade.  E aquele que era marginal se assujeita a um "nós" que não é ele. Assume o discurso que não é dele e nunca será até pela sua condição de marginal. Ao ser anexado pelo saber-poder autoritário, sua alavanca para o mundo agora é de UM que está contido num certo NÓS e que não ver/nem aceita no outro a possibilidade de ser outro que não o mesmo que o nós que ele é. E o resultado final disso é o aniquilamento do outro.

Na peça o capitalismo na sua forma social produz a barbárie. Na atualidade a barbárie continua, mas com ela cada vez mais a sujeição. A luta política hoje, talvez, seja para saber quem somos ou que estamos nos tornando. Para daí ventilarmos a possibilidade ser outra coisa.E nesse sentido ter a capacidade de constituir-se por si mesmo, de transforma-se no interior das relações sociais e dos sistemas culturais nos quais se insere. Um trabalho como o aqui apresentado, tanto na sua forma de dramatúrgica quanto na sua encenação são ótimos canais para nos ajudar pensar essas questões.

Por fim, gostaria de lembrar que tudo aqui escrito não necessariamente representa o que a peça, o espetáculo. Todavia, foi partir de... Que sistematizei tal pensamento. E como tal torna-se um exercício permanente de escrita.
A peça fica em cartaz até o dia 24/02. Boa peça!!!!

Referências:
DELEUZE, G e GUATTARI, F. O que é a Filosofia ?
DUARTE, A. Vidas em risco.