DOIS
PERDIDOS NUMA NOITE SUJA: uma exposição cênica do corpo social
Está
em cartaz no Teatro de Arena Eugênio Kusnet o espetáculo DOIS PERDIDOS NUMA
NOITE SUJA do dramaturgo brasileiro Plinio Marcos e realização da CIA.
Teatroendoscópico de Santo André: Com Daniel Gregório (na noite de sexta-feira
dia 17/02 vi com Ícaro Rodriguês substituindo o mesmo) e Glauber Pereira. Quem
assina a direção é Flávio Marin.
A
peça foi escrita pelo Plínio Marcos em 1966 e de lá para cá muita coisa mudou no
que se refere ao mundo e, principalmente, ao Brasil, para não falar de São
Paulo. Entretanto, isso não quer dizer que a peça tenha se tornado obsoleta,
pelo contrário, tornou-se uma exposição cênica apurada do corpo social, se não
pela semelhança com os dias atuais, pelo seu papel de um arquivo fotográfico
poético (vou chamar assim) que nos ajuda a descortinar as mudanças ocorridas
tanto na constituição do “individuo marginal” e excluído quanto na conformação
da sociedade atual. Os personagens (Paco e Tonho) que o dramaturgo criou
através de uma observação polida da realidade social e por meio da sua escrita representavam
tipos sociais, dito de outra forma, eram representações sociais, descrições
parciais de uma dada realidade. Mas que apesar disso adequadas para o objetivo
proposto, a saber, o de falar sobre a sociedade. Ou se quiser, o de falar sobre
aqueles que são excluídos, marginalizados pela mesma. Permitindo, desse modo, inferir
o todo que é a sociedade.
Parece-me
que o Plinio Marcos na sua dramaturgia não deixa barato e não faz concessões ao
criar os dois. Pois da sua escrita-fala-boca o que se chega e se escuta são
palavras cortantes que ajudam na construção de personagens-carnes, corpos-vida
e não espectros de uma realidade. Basta ver a intensidade que cada personagem
exige dos artistas para o êxito da sua corporificação. Um trabalho árduo, um
trabalho de escultor do ator para que não caia numa dramatização clichê e nem
fique aquém da força que cada personagem-corpo-carne suscita. Um trabalho
ficcional que não é um mero colocar-se no lugar do outro, mas o de experimentar
forças abrir-se a outros mundos, a outras intensidades de vida.
Os
personagens do Plinio Marcos, me parece, estão sempre à margem de certo
circuito estabelecido e solicitado por uma certa (con)formação social. Um corpo
marginalizado, um “corpo-monstro” que a sociedade (que não é um mero aglomerado
de indivíduos, mas uma ordem social, uma formação que sobrevém aos indivíduos
os forçando a auto regulação, portanto, influenciando em seu desenvolvimento e
percepção) com suas normas e valores estranha por não se assemelhar ao seu “corpo-orgânico”,
ou melhor, ao seu ideal de corpo (e aqui tanto o individual como o social). Por
isso, uma sociedade punitiva, que encontra na vigilância e punição formas de
adestramento e captura ou de exclusão total. Todavia, já nos diz um certo
filósofo francês, o poder não apenas reprime, mas cria realidades e a forma
como ele se exerce deixa de ser apenas disciplinar para se tornar também de um
sistema de controle desprovido de um centro único de organização e também
articulado em redes de visibilidade absoluta e comunicação virtual imediata. A
sociedade de controle ressaltou ainda mais a centralidade dos fenômenos vitais
da população como alvo constante e insistente de investimentos, produções e
controles, “que na maioria das vezes, são inclusive desejados pelos próprios cidadãos”.
(DUARTE, 2010, p. 207). Ou seja, uma operação tanto no sentido totalizante –
com que todos concordam – quanto no sentido individualizante.
E
nesse sentido é interessante perceber como as mudanças econômicas -sociais,
mesmo que num período curto de tempo, produziram a necessidade de se olhar para
esses personagens de forma diferente, ou seja, tentando averiguar no
presente a sua materialização, melhor
dizendo, o que seria a sua atualização. Pois a sensação é de que aqueles
personagens que chamei de “personagens-carnes” que contém em si uma violência
intensiva e que faz fremir a própria estrutura social no que tange ao modo como
se coloca no mundo, na atualidade se tornaram outra coisa. Talvez isso possa
ser comprovado na dramaturgia contemporânea com personagens de outra ordem e na
ausência deles. E não quero dizer aqui que isso é ruim ou bom, mas apenas
atentar para o fato de que tal manobra resulta de um processo histórico que
implica em novas formas de representação da realidade. Implica em o teatro olhar
para sua realidade. Todavia, “a arte conserva, é a única coisa no mundo que
conserva, conserva e si conserva em si”, mas não à maneira da indústria que
“acrescenta substancias para fazer a coisa durar” (DELEUZE, 1992, p. 193), e
sim, por torna-se independente do seu modelo, do seu criador, para fazer
emergir e conservar sensações, bloco de percepções e afetos que age sobre nós,
fazendo com que nos deslocamos do ponto que nos encontramos.
A
obra nessa intensidade não fica datada. Pelo contrário, provoca deslocamento,
estranhamento, desnaturaliza o que comumente é tomado como natural. Ela
converte-se numa arma poética intensiva. E nada era mais caro ao Plinio Marcos
(penso) que sua obra ser uma arma poética contra um modelo social de produção
de seres excluídos socialmente. Não obstante, se lá eles estavam excluídos
socialmente e isso é evidente na peça, cá eles continuam excluídos, mas agora
com um novo estatuto; o de incluído-excluído. Ou seja, são incluídos graças ao
processo de regulação das condutas, o que quer dizer tornarem-se escravos de si
do outros, assujeitados. E também excluídos por ainda continuarem na categoria
do anormal. Sua inclusão, portanto, é pela lógica da doença social, que dizer, deve
ser cuidado para não se alastrar como vírus, e assim, chegar a provocar
distúrbios, o que permite colocar tal ação na categoria de prevenção, de deixar
morrer e não mais de matar ou colocar numa NAU. Claro, quando isso for
possível, pois quando não for o estado de exceção está aí para corrigir. Pois se
tem uma coisa que esses mecanismos dominantes não conseguem prever e controlar
de maneira definitiva são as insurreições contra essas formas de poder, visto
que elas podem emergir de qualquer lugar a qualquer momento.
A
leitura feita aqui da obra do Plinio Marcos não se pretende verossímil à mesma,
mas a utiliza como um arquivo poético para pensar o presente. Tentando
encontrar ecos entre a obra e a realidade vigente sem com isso reduzir a obra a
uma mera cópia da realidade, pelo contrário, o que a mesma suscita é o ato de
estranhar a realidade. A força dela estando muito mais (imagino) na comparação
por conta da sua duração no tempo do que no figurativismo.
Tanto
é que a encenação que tive o privilégio de presenciar se utiliza de procedimentos
do teatro épico para levar para o palco e desse modo falar da sociedade. Vale a
pena lembrar que a obra dramatúrgica tem como forma o drama, mas o espetáculo
ao ser encenado pelo coletivo torna-se épico.
Isto de cara coloca a questão da tensão entre a escrita e sua realização
cênica. E mais, entre enunciado do conteúdo e da forma. O que nos faz lembrar
que a forma dramática está vinculada a história e por isso mesmo necessita ser
colocada em perspectiva e desse modo aferir sobre sua eficácia na atualidade. A
encenação ao optar por procedimentos épicos escancara a contradição entre convenções
estáveis e formas novas que as modificam e que são necessárias para falar sobre
o mundo de hoje para gente de hoje. Trazendo para cena, no meu entendimento, algo
da ordem do inacabado porque do vivo, do potente.
Se
na peça a relação é intersubjetiva, próprio da forma dramática, na encenação
ela converte-se em algo próximo ao épico posto que ela se abre para o mundo,
rompe com a construção rigorosa da ação, amplia o espetáculo para além do
diálogo, fazendo com que as condicionantes sociais fiquem mais evidentes. Uma
das maneiras que o encenador encontrou para executar tal modificação foi a de colocar
os personagens direcionando suas falas cortantes ao público e não ao outro. Rompendo
assim com qualquer tipo de ilusionismo, de presente absoluto. O efeito
provocado por tal procedimento é o de um corpo falado, isto é, de uma fala que
vem vindo e faz aquele corpo falar, ser o emissor, mas não o criador dela. Um
reprodutor de uma ordem.
O
primeiro ato com seus quatro quadros e parte do segundo ato vão nessa direção.
A relação de força presente na peça fica na forma encontrada pela encenação
mais evidente. O pêndulo não para. Cada
um em tempos entrecortados assume essa fala que vem vindo acarretando o domínio
hora sobre um, hora sobre o outro. O que na forma dramática se caracteriza como
conflito e prende o espectador, na encenação ganha contorno de conflito social
porque o sujeito é fruto das relações sociais e reforça seu caráter teatral e,
portanto, anti-ilusionista. É só na
última cena que o confronto entre os dois acontece. E aí fica mais evidente
como discurso autoritário opera na forma totalizante ao mesmo tempo que individualiza. Isto é,
imprime uma marca, determina uma identidade. E aquele que era marginal se assujeita a um "nós" que não é ele. Assume o discurso que não é dele e nunca será até pela sua condição
de marginal. Ao ser anexado pelo saber-poder autoritário, sua alavanca para o
mundo agora é de UM que está contido num certo NÓS e que não ver/nem aceita no
outro a possibilidade de ser outro que não o mesmo que o nós que ele é. E o
resultado final disso é o aniquilamento do outro.
Na
peça o capitalismo na sua forma social produz a barbárie. Na atualidade a
barbárie continua, mas com ela cada vez mais a sujeição. A luta política hoje,
talvez, seja para saber quem somos ou que estamos nos tornando. Para daí
ventilarmos a possibilidade ser outra coisa.E nesse sentido ter a capacidade de constituir-se por si mesmo, de transforma-se no interior das relações sociais e dos sistemas culturais nos quais se insere. Um trabalho como o aqui
apresentado, tanto na sua forma de dramatúrgica quanto na sua encenação são ótimos
canais para nos ajudar pensar essas questões.
Por
fim, gostaria de lembrar que tudo aqui escrito não necessariamente representa o
que a peça, o espetáculo. Todavia, foi partir de... Que sistematizei tal
pensamento. E como tal torna-se um exercício permanente de escrita.
A
peça fica em cartaz até o dia 24/02. Boa peça!!!!
Referências:
DELEUZE, G e GUATTARI, F. O que é a Filosofia ?
DUARTE, A. Vidas em risco.
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