quarta-feira, 15 de novembro de 2017

SIETE GRANDE HOTEL: a sociedade das portas fechadas. Ou um poema dramático-trágico.




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SIETE GRANDE HOTEL: a sociedade das portas fechadas. Ou um poema dramático-trágico.

Não é só nos livros que encontramos profundas reflexões sobre os efeitos da guerra e do poder político. Também encontramos na arte uma chave para pensar a guerra e seus efeitos sobre o território, a população de uma determinada sociedade. Basta lembrarmo-nos do famoso quadro pintado em branco e preto de Pablo Picasso: Guernica.

Outro lugar que encontramos inúmeras representações acerca dos efeitos da guerra bem como do poder político é no teatro. É só recordar, para ficar em um exemplo, a obra do dramaturgo, diretor, poeta alemão Bertolt Brecht.

Do teatro, a partir da sua relação com a realidade, tem emergido belos trabalhos, principalmente de artistas e grupos que tomam posições face às iniquidades sociais, que são engajados com a vida. Parece-me ser o caso do grupo Redimunho de Investigação Teatral. E mais ainda, seu novo espetáculo: SIETE GRANDE HOTEL: a sociedade das portas fechadas. Um espetáculo que tem como nuvem histórica os casos dos soldados de borracha, nome dado aos brasileiros que entre 1943/1945 foram alistados e transportados para Amazônia com a missão de extrair borracha para os Estados Unidos. O acordo de Washington bem como as lutas empreendidas pelos movimentos populares a favor de moradias e terras.

Um caleidoscópio cênico. Um trabalho repleto de imagens e simbolismo, emergindo daí a teatralidade, isto é, a emancipação do teatro ao texto, sem com isso diminuir a força da narrativa, mas pelo contrário, criando a espacialidade adequada para sua execução. Ao mesmo tempo um trabalho de estilo tardio: algo que estar no presente mais estranhamente apartado dele, onde um presente brutal é substituído por um outro tempo. Uma espécie de inconciliabilidade, de plano de ação para falar do presente sem necessariamente se submeter a um certo modismo cênico em vigor no presente.

O trabalho pode ser pensado como um híbrido dos diversos gêneros presente no teatro enquanto forma bem como a partir da vizinhança com outras linguagens. Haja vista as instalações dos quartos-quadros. O que parece dá mais força ao trabalho. Ao estrutura-lo em um prólogo, sete quadros-quartos-instalações e um epílogo, muito próximo, aliás, ao expediente épico do Brecht, no sentido de cada cena-quadro-quarto, valer por si e pela potencia da narrativa. Sem contar os entres de uma cena para outra que a encenação encontrou, por exemplo, a personagem da empregada e o deslocamento dela pelas cenas. Criando camadas de temporalidades. Não bastassem tais procedimentos, a força do drama (no sentido de um acontecimento no presente, numa representação pela ação) humaniza os personagens sem perder a dimensão que produz a desumanização, quer dizer, a guerra e a política destituída de seu caráter de relação com a pólis (o viver-junto) ao mesmo tempo em que se resume a uma preocupação econômica. Todavia, se o dramático na sua força de acontecimento violento, de descrição de uma situação se desenvolve, não se pode falar o mesmo em relação à sua forma, ou seja, o drama sofre um golpe ao ser substituído por quadros. A lógica clássica da fábula, fundada na progressão constante da ação até a resolução final do conflito se ver abalada. Um trabalho contaminado de gêneros, estéticas e culturas, que o aproxima ao um poema dramático pela sua força de diluição das fronteiras acimas citadas e ao mesmo tempo trágico pela dimensão cíclica que ele traz da política enquanto conflito permanente. Repleto de violência, de perda de conexão, de homens reduzidos ao silencio, mas também de contestação.

Michel Foucault no seu livro “Em defesa da sociedade” define a política como a guerra continuada por outros meios, invertendo a proposição de um dos mais criativos estudiosos e estrategista da guerra, a saber, o general prussiano Carl Von Clausewitz. Para este a “a guerra é a continuação da politica por outros meios”.

A guerra ajuda Foucault a analisar as relações de poder. Para o pensador francês a análise do poder tem que ser feita numa base de relação de força, de combate, de enfrentamento, de guerra. O poder sendo, portanto, a guerra continuada por outros meios.  O aforismo invertido nos ajuda a pensar acerca do modo como certo poder político se estabelece numa sociedade como nossa, isto é, como ele ancora uma certa relação de força estabelecida em momentos históricos. Instituindo privilégios para alguns em detrimento de outros.  E mais: escancarando como é ilusório pensar que o poder político para a guerra e constitui a paz neutralizando o desequilíbrio produzido pela guerra.  O que o poder político tem como função é “reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma guerra silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos uns dos outros”.

Nesse sentido, a política como a guerra continuada, é a “sanção e a recondução do desiquilíbrio, das forças manifestas na guerra”. A guerra da mesma maneira que a política como a guerra continuada por outros meios produz a classe dos despossuídos: sejam eles escravos, soldados perdidos numa intensa desterritorialização geográfica quanto psíquica. Produzem vidas precárias, destituídas elas mesmas da qualificação de vidas. E, portanto, lesada de um estatuto de vida política. Produz mecanismos e parasitas políticos que vivem do trabalho alheio.

Entretanto, como define Foucault, a política é relação de poder, ela é então combate, enfrentamento. Daí pode surgir resistências. Movimentos insurgentes descortinando essa falsa paz.

No interior desse grande hotel estão sendo gestados, e é isso que observaremos ao vivenciar o espetáculo, um começo, um recomeço de uma luta coletiva, poderíamos dizer de uma “hipótese comunista”, não como ideia reguladora a priori, mas um movimento necessário de reação a um conjunto de antagonismos sociais.  

A primeira cena, ainda no espaço externo, quer dizer, na rua, é um canto a uma ação coletiva. A um enfrentamento. A cena seguinte é uma enunciação do que virá ao mesmo tempo em que é a voz totalizadora do sindico. Ele, a propósito, é o único que tem o figurino completo, podendo ser pensado como uma alegoria do patrão.  Enquanto em todos os outros personagens faltam alguma peça de roupa. Seres incompletos pela força da desigualdade. O povo num regime totalitário, o povo numa democracia oligárquica. Para não falar no sistema econômico em vigor. 

O primeiro quarto poderia ser tranquilamente uma pintura do Portinari, pela sua força imagética e simbólica. Uma cena com dois planos. Acima, aqueles que se beneficiaram dos diversos modos de exploração. A imagem de um casal burguês à mesa. Fora da mesa a empregada. Abaixo, dois despossuídos. Um tecendo a bandeira que será o símbolo da luta coletiva. O outro sufocado por tudo, pela demora em reagir, pela vida que tem. A água é metáfora desse homem sendo sufocado. Sobre sua cabeça se assenta os exploradores.

Todo o trabalhado não pode ser pensado fora do registro dos atores e atrizes. De como essas alegorias são atualizadas por meio da criação sensível de cada um e cada uma. Uns buscando um registro mais próximo de uma composição do teatro do absurdo, outros num registro mais corporal, violento e poético. Não poder ser pensada fora do registro musical. Que, aliás, tem na musicalidade latina americana o seu referencial. O seu canto por reconhecimento. A luta. Não pode ser pensado fora do registro de orquestração da encenação bem como da poética do texto. É um espetáculo onde as partes e todo se mesclam. 

Não analisarei cena por cena, até gostaria, mas isso significaria muitas páginas, além da perda do ser afetado pela vivência primeira de cada cena.

O que, talvez, seja interessante pensar através do espetáculo é o que está sendo formado e imaginado no interior desse grande hotel, dessa sociedade de portas fechadas. Davi Kopenawa nos alerta sobre “a queda do céu” ao pensar sobre os riscos que a sociedade organizada por esse sistema político corre ao tornar o povo em povo-mercadoria. Podemos utilizar a expressão do Davi também, talvez, como um vislumbre de um horizonte da queda daqueles que se assentam sobre nossas cabeças como está representado na peça.

O espetáculo é a uma força cênica e é também um canto para levantar nossos fardos e seguirmos. O espetáculo acaba nos apresentando a rua. Onde tudo começou. O que nos revela o caráter cíclico da política, da guerra. Da ordem e da desordem dos tempos. Dos pesos dos tempos. Estando aí o caráter trágico da vida. Esse eterno viver em conflito. Essa eterna certeza da instabilidade das coisas. 

Enfim, um trabalho para ser visto, vivido e conversado.





segunda-feira, 6 de novembro de 2017

a desinformação como estratégia

Compartilho a entrevista-resposta que o presidente da cooperativa paulista de teatro concedeu, ao ser procurado por um jornalista da Folha de São Paulo acerca da LEI de fomento para cidade de São Paulo. Desse modo, podemos cruzar e confrontar a resposta do representante de uma cooperativa com mais de 4 mil associados (entre artistas e técnicos), e com mais de 30 anos de existência com a de um jornalista que promove a DESINFORMAÇÃO por meio da sua reportagem. Alguns equívocos da parte do jornalista: 1 - trata a Lei do fomento como uma espécie de política de compadrio e não como política pública de Estado, que é o que ela é! Portanto, é errônea (para não dizer outra coisa) sua interpretação sobre a forma gasta dos valores destinados nos quatro anos da gestão. O prefeito da gestão passada não deu nada, como o repórter quer com sua reportagem fazer acreditar. O prefeito apenas executou aquilo que está na lei e deve ser posto em prática. Não sem muita luta por parte dos movimentos. O que significou em vários momentos atritos com a gestão. Desmentindo o jornalista quanto a uma certa relação de favores que na sua reportagem ele intenta colocar. Nada diferente da relação com outros políticos antes dele. Exemplo: Marta Suplicy, José Serra, Gilberto Kassab. Pois o pouco que se conseguiu em políticas públicas para as artes e cultura neste país não se deu sem muita luta, pressão e visitas diárias a gabinetes para pressionar os “representantes” e presença em sessões do legislativo. 2- Apresenta valores numa tentativa esdruxula de atacar a lei. Mas não busca com a mesma veemência as implicações dessa lei nos quatro cantos da cidade no que se refere à produção de territórios culturais, de uma ecologia social-psíquica e física. Nem se dá ao trabalho de pensar quantas(os) trabalhadoras e trabalhadores são beneficiados diretos e indiretamente. Sem contar milhares de crianças, jovens e adultos que tiveram acesso à produção de obras artísticas gratuitas e mais do que isso, participaram muitas vezes, da construção do trabalho junto com os artistas. Significando outro tipo de relação com o trabalho artístico, com a obra de arte. Sendo mais próximo de uma troca de experiência do que de consumo. Não teve o trabalho de averiguar os documentos, os registros visuais, os programas dos espetáculos. Pois notaria ainda mais a importância da lei do fomento para cidade. Bastando olhar para os temas bem como as escolhas estéticas que na sua grande maioria tendem a pensar e trazer para o centro da discussão aqueles que historicamente no sistema econômico em voga sempre foram excluídos, ou seja, a classe pobre com seus valores, suas histórias, suas dores, sua percepções. O trabalho continuado dos grupos fomentados até hoje possibilitou a criação de uma rede gigantesca de produção artística, acadêmica.

A Lei tornou-se exemplo para outras regiões do país e para outros países. Muito dessa produção representou o país em centenas de festivais pelo mundo. Portanto, ele não olhou, ou melhor, não quis olhar para a organização de uma política pública como a lei de fomento no sentido do que ela criou, isto é, não teve um mínimo cuidado de pensar a cadeia cultural (as etapas de criação, circulação e fruição dos bens artísticos e culturais) designada por tal lei. Ou seja, ocultou na sua reportagem o circuito de produção. Detendo-se de maneira covarde nos trabalhadores/produtores no que é destinado a cada coletivo. E também obliterou da reportagem a soma dos integrantes dos coletivos (quanto cada um muitas vezes ganha), os meses e anos de trabalho que tal valor cobre e que na maior parte das vezes só dá para sobreviver. 3- Quis colocar em dúvida as comissões. Nesse momento ele aprofunda mais ainda sua total ignorância. Ainda mais para quem já participou de comissões e sabe a treta que é.  Enfim, ele nem buscou na LEI o que ela na sua dimensão institucional (sociológica) implicou na dimensão antropológica da cultura, ou seja, na interação social dos indivíduos: elaboração dos modos de pensar e sentir, etc. Ou na forma como ela embaralhou ou vem embaralhando as disposições do sensível.  

A reportagem é um desserviço e uma desinformação. É o olhar de uma figura que a Hannah Arendt, num dos seus ensaios, chama do burguês filisteu, que é aquele que não sabe lidar com a cultura a não ser transformando-a em mercadoria.

Ah, ele não leu a LEI.

segue a entrevista:

 Rudifran Almeida Pompeu (presidente da cooperativa paulista de teatro)

"Que o jornalismo da Folha é de embrulhar o estômago e nem merece muita interlocução eu ja sabia, mas hoje faço questao de postar aqui as respostas que enviei ao "jornalista" tendencioso e parcial Rogério Gentile a respeito das questões que ele me fazia na semana passada sobre as cooperativas através de um e-mail...Daí se vc tiver estômago é só comparar com a materia que ele publicou hoje...
Meu nome é Rogério Gentile, sou repórter da Folha de S. Paulo e preparo uma reportagem a respeito do programa de fomento à dança da Prefeitura de São Paulo.
Gostaria de fazer algumas perguntas ao senhor Rudifran Pompeu, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro.
1) Durante a gestão do prefeito Fernando Haddad, a Cooperativa de Dança e a Cooperativa de Teatro foram praticamente as únicas entidades que receberam convites para integrar os comitês de juri do programa. Não havia divulgação pública sobre a possibilidade de integrar o juri nem publicação em Diário Oficial. Além disso, em várias ocasiões, nomes ligados à cooperativas foram indicados pela Secretaria de Cultura para ocupar os assentos da própria prefeitura na comissão. O senhor entende que o procedimento foi justo?
Caro, Rogerio! Espero pelo principio do bom jornalismo que se possa fazer uma analise menos comprometida com este ou aquele lado na matéria a que se propõe, e que avancemos para um debate com os fatos reais e históricos da militância cultural e evidentemente das politicas estruturantes como é o caso do fomento a dança... E que escapemos da politização partidária ao qual se tenta jogar as lutas e a cultura da cidade. O Fomento a dança foi sancionado pelo Prefeito José Serra do PSDB e antecede ao Haddad, e a forma de indicação das comissões, são previstas em lei, e imagino que tenham sido conduzidas da mesma maneira em todas as gestões dos diferentes partidos.
A cooperativa Paulista de Teatro é uma entidade que existe desde 1979, portanto um modo de produção que resiste desde a ditadura militar e se configura certamente como uma das entidades mais representativas dessa cidade e do estado, muito por isso indicamos nomes da sociedade civil com notório saber nas áreas, exatamente como manda a lei.
Não posso responder pelo governo e, portanto não sei se fomos os únicos convidados a indicar nomes, mas creio que não, pois nossa relação com os governos (incluindo do Haddad) sempre foram tensos e mesmo que com dialogo, nada nunca foi tranquilo no nosso campo...Na gestão Haddad (já que ele é citado aqui) a cooperativa ocupou a prefeitura com 400 artistas pressionando a secretaria de governo e o próprio prefeito por conta da manutenção das leis de fomento. Em governos anteriores enfrentamos inúmeras dificuldades com os gestores e chegamos inclusive a derrubar um secretario (Emanuel Araújo) e em seguida passamos quase todo o governo do Kassab “esticando a corda” e brigando (politicamente) com o Calil que era o secretario da cultura dele...
Digo isso para alertar que nossa luta não é partidária, mas temos a consciência que ela não acaba nunca... Nós não vivemos em clima de “compadrio” com quem quer que seja como parece induzir a sua pergunta (essa sim injusta), pois necessitamos (o tempo todo) de pressionar os governos de plantão e por isso não me parece lógico que o governo vá convidar “somente e unicamente a cooperativa” para indicar nomes...Mas essa questão é preciso perguntar ao governo.

Os quadros que compõe comissões não estão livres de levar nomes de alguma maneira “ligados” a cooperativa, pois a nossa instituição existe a mais de 30 anos e tem vínculos diretos na prática das artes cênicas (e inclua nisso a dança), e evidentemente também no universo acadêmico que implica em estudo, pesquisa e formação e em inúmeros campos do saber.
Temos em nosso quadro associativo inúmeras personalidades importantes do teatro e da dança, o principio do cooperativismo é previsto em lei nacional e como entidade representativa e sem fins lucrativos me parece normal que artistas de alguma forma se relacionem com a cooperativa, afinal é uma entidade que os representa.
2) Dos 116 projetos aprovados, 87 eram de grupos e companhias ligadas às cooperativas (a de teatro venceu 42 vezes). O senhor considera que o resultado é uma consequência direta desse modelo de comitê de juri?
A cooperativa é um CNPJ que representa em media 4 mil artistas e cerca de 800 coletivos de artes cênicas, portanto inscrevemos mais projetos nos editais do que uma empresa de capital privado com fins lucrativos, e é isso que obviamente resulta num maior numero de contemplados da cooperativa...Mas se colocar isso no gráfico proporcional, uma empresa que inscreve um único projeto e é contemplada , ela tem 100 % de aproveitamento o que não é o caso da cooperativa, pois que contempla muito menos projetos do que ela tem em seus quadros...
O resultado que você aponta, na minha opinião, alem do que já disse acima, deve ter sido pela excelência dos projetos, ouvocê acha que não? Esse modelo de comitê de júri me parece o mais republicano que existe, o governo manda uma parte e a sociedade civil interessada manda a outra parte...E depois a coisa é votada...me diga onde isso é feito? Nas organizações sociais do estado, é feito como? Quem indica os curadores? Na virada cultural é feito como? A gente pode votar nas curadorias? Óbvio que não! Tem um comitê de júri? Nas fundações como no teatro municipal, que recebe mais de 100 milhões do recurso direto da cultura, a gente pode participar do conselho? A gente pode votar em qual Ópera queremos? Em qual projeto queremos para a cidade?Enfim...
3) A gestão atual mudou o edital da dança de maneira a exigir que os grupos vencedores realizem apresentações em equipamentos públicos. O senhor concorda com essa nova regra?
Não eu não concordo com a regra, pois isso de alguma forma inverte os papeis e a secretaria acaba legislando sobre a matéria... O executivo devia executar a lei e não criar leis, pois para isso é preciso se eleger vereador...
Ademais existe uma reclamação por parte da categoria que ao fazer isso a secretaria impede os grupos que não tem fomento de poderem ocupar a agenda dos equipamentos públicos, e isso gera mais problemas, é compreensível que o executivo tente viabilizar maneiras de fazer a programação dos equipamentos em tempos de crise, mas certamente não acho que é mexendo em lei que se vá conseguir isso...Mas esse é um ponto que eu gostaria de debater com mais amadurecimento.
Por favor, preciso de uma resposta até 15 horas de quarta-feira,".

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A gente SUBMERSA: um poema teatral


A gente SUBMERSA: um poema teatral

Encontramos numa das obras de Walter Benjamin a seguinte frase: “A forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”. Podemos pensar essa frase do Benjamin para discorrer acerca da conformação de um tipo de sociedade que se assenta sobre uma determinada base material e o modo como esta interação interfere, pelo seu condicionamento, na transformação social e antropológica; fabricando novas figuras de subjetividade, figuras que estão relacionadas com o ver, sentir e fazer, emergindo daí certos tipos de coletividades. 

Nesse sentido, talvez, nenhum outro sistema social veio a interferir tanto, ou melhor, alterar tanto algumas das mais íntimas e pessoais características da existência cotidiana como a modernidade. Os modos de vidas produzidos pela modernidade desvencilharam os indivíduos de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes. Sendo inerente ao ambiente moderno o movimento. Entretanto, tal ambiente não se constitui sem contradições. Marx e Engels já chamavam atenção para o fato da modernidade ser em si um paradoxo na medida em que ela por um lado une, transforma, integra, por outro, ela nos despeja, a todos, num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno, nesse sentido, é fazer parte de do universo no qual, como disse os autores do Manifesto Comunista: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”.

A modernidade edificou um espaço-tempo próprio, o que significou submeter outros espaços tempos à sua maneira. Dito de outra forma, seu processo, utilizando-se de certa racionalidade invocada para ordenar o espaço tempo, acaba expulsando todos aqueles que pelo modo como habitam a terra e se relaciona com o mundo de maneira distinta a ofertada por ele, são considerados inconvenientes ou mesmo ameaçadores.

O espetáculo A gente SUBERSA em cartaz no Teatro do Incêndio, parece ir à contramão desta dinâmica. A primeira cena já dá o tom e a batida do que vai ser o espetáculo. Evocando a presença de outra temporalidade.

O enredo é conduzido por três personagens, figuras alegóricas da sabedoria popular, que atravessam os tempos seguindo pelo mundo contando suas histórias e as histórias do mundo. Histórias que eles viveram? Histórias que eles inventaram? Não importa. O que vai ficando claro durante o percurso é cada vez mais a impossibilidade da existência dessas figuras assim como o que elas representam enquanto forma de vida no ambiente que é próprio da modernidade, a saber, a metrópole, a cidade.

Ambiente que se organiza pelo trânsito, pela iminência das coisas, das relações, pelas vidas sem relatos. Pelos “não lugares”: espaços de circulação, diametralmente oposto ao lar, à residência, ao espaço personalizado. Aliás, muito bem representado na cena do o coro de rosto em série... Também de um corpo, de uma unidade, de uma não singularidade. O indivíduo da metrópole de uma sociedade sem relato é só, mas junto com outros, onde a relação se dá de maneira contratual representada por símbolos: cartão de crédito, bilhete de metrô, documentos – careteira de motorista ou qualquer outro. Uma identidade sem pessoa. Um ser sem presença.

Aqueles que carregam, ou melhor, aqueles que são a materialidade de uma sabedoria, de um tempo que não o tempo da racionalidade técnica, mas de um tempo da natureza, do tempo da criação de vidas que habitam, de distintos modos, ou vivem uma temporalidade incerta, uma vida na força de um ritual, para esses não resta nada nesse mundo a não ser a invisibilidade. Todavia, se não é nesse mundo que sua força vai ser presente (isso é forte na peça) é na evocação da sua ancestralidade: no uso de máscaras, na pintura do corpo, como se fosse uma segunda pele que habita aquela primeira, que veremos a elevação da corporeidade a uma outra dimensão. É possível encontrar armas durante a fuga, em meio ao próprio campo de batalha.

A peça parece ser um grito e, por conseguinte, um combate a esses não lugares e essas formas de vida sem pessoa. A um sistema que vive de saltos para frente num ritmo vertiginoso sem deixar raízes, que obriga meramente a sobreviver por um dia. Uma rebelião contra o esquecimento de onde se vem, contra a sociedade de massa que se edifica pela colonização do imaginário e do corpo. Contra um processo civilizatório que age sobre o corpo fazendo-o volta-se para si ao invés de abri-lo para o mundo. Ora, não podemos esquecer que uma das formas do poder agir sobre o sujeito é tornar o corpo sozinho, o fazer falar a língua dos códigos que nele se inscrevem.

O trabalho parece querer ser, por meio da sua investigação estética cultural, um terreno de contestações sobre as condições da vida, dessas vidas distintas do modelo engendrado pela modernidade capitalista.

A peça é um elogio à “inconstância selvagem”: entendido aqui como a potência do sensível, da força ritualística da sabedoria. Como um conjunto de partes heterogêneas que não se deixam unificar. É uma recusa à modernização dos sentidos, isto é, uma recusa a predicados, a formas fixas. Mais próximo, portanto, de um sentir, de um emergir-se ao mundo, de um estar dentro e não diante. 

A peça é um canto ao corpo. Ao corpo como profusão do sensível. A um corpo que se inclui no movimento das coisas e se mistura a elas com todos os seus sentidos. O trabalho do grupo é uma ode a um estado vibrante que faz passar o indivíduo ou o coletivo de um estado a outro. Não por acaso a peça é um cântico, uma dança, uma viagem fora dos códigos que reduz o corpo a representações. É uma viagem em direção a um “corpo puro” isto é, “incodificado”, possuidor de energias livres que retorna à natureza para desempenhar o papel de permutador de código outros.

Muito próximo, aliás, a um pensamento de um teatro da crueldade ou o teatro ritualístico de Artaud. Pois o teatro do Incêndio é um teatro do espaço poético onde as imagens matérias são equivalentes às imagens das palavras. O estado poético que emerge das cenas do A gente SUBMERSA é próxima uma poesia concreta, isto é, algo é produzido objetivamente através da presença ativa em cena. É um teatro que fala diretamente ao espírito. Trata-se, nesse sentido, da exposição do teatro por si mesmo, como um arte no espaço e no tempo, com corpos humanos e todos os recursos que o teatro inclui e o faz ser uma obra de arte total.

Tudo isso só sendo possível graças à dimensão antropofágica muito forte no grupo, haja vista a incorporação musical que vai das matrizes populares brasileiras e africanas até o pop estadunidense de Michael Jackson ou o funk das metrópoles. Há no grupo uma investigação estética cultural que leva a uma certa brasilidade revolucionária.
A peça é uma “luta dissimilação”, que enseja a criação de distancias em relação a certos modos de vida, empregando para isso os instrumentos da diferença linguística, ritual, histórica e de atitudes.  

Artaud dizia que o verdadeiro teatro era aquele que fazia escorrer pelas brechas da cultura ocidental, com suas formas petrificantes, as sombras que guardam nelas as vibrações da vida. Parece ser o que convoca a encenação de A gente SUBMERSA. Nesse sentido podemos retomar ao início, à citação do Benjamin e pensar que uma saída para criação de uma percepção outra esteja no espaço das artes. De uma arte engajada com a vida, com o mundo.

Enfim, a peça está em cartaz e pode ser vista no Teatro do Incêndio que fica na Rua Treze de Maio no Bexiga.  Todo sábado às 20h e Domingo às 19h.

O trabalho é muito mais do que tudo isso, ainda mais pela sua força artística. A minha escrita é uma traição ao espetáculo. Vão ver e saberão porque.


Vale conferir e muito. 

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Bug Chaser: Coração purpurinado Ou a Vida na Berlinda


Bug Chaser: Coração purpurinado Ou a Vida na Berlinda

Até aonde vai um corpo na luta para expressar-se na sua potência, no seu inacabamento, no seu brilho, na constituição de uma vida livre das amarras, da imobilidade, subvertendo assim, a docilidade e a disciplina, o controle da macro-engrenagem do poder capitalista que opera pela sujeição social e pela servidão maquínica?

Até aonde consegue ir um corpo que explode a medida, ou melhor, até aonde o corpo suporta ir, num Estado que ordena um tipo de sociedade e que se edifica se reproduz pelo exercício de poder que toma a vida como um fato, natural, biológico, ou como diria Giorgio Agamben como vida nua, como sobrevida, como uma vida exposta à ação imunizante protetora do poder, uma vida sem qualquer proteção no que se refere a um poder que dirige, manipula e deixa morrer, quando não mata!

O que pode um corpo ou suporta - que fique claro que não é o corpo da norma, da vida qualificada - numa sociedade que age pela privação de alguns enquanto concede a outros o acesso ao que seria por direito (e aqui não se refere ao direito jurídico) comum a todos e todas, portanto, à partilha desse comum, ao pertencimento, a reciprocidade?

O que estão fazendo com a vida. Com as vidas paralelas que se expressam pela experimentação, que divergem de um modelo imposto, que por ser tão radical na sua singularidade não podem ser reunidas e nem parte de um mesmo lugar e tão pouco devem ser copiadas, ser um exemplo, o que não significa que elas devam ser exterminadas, ou colocadas sob correção suas condutas através de um saber-poder médico e biológico que está a serviço de uma auto-afirmação da parcela daqueles que se intitulam homens de bens, detentores de uma moral que legitima suas ações e que tratam tudo aquilo que divergem deles como doença.

Parece-me que todas essas questões e mais algumas percorrem o espetáculo Bug Chaser: coração purpurinado. Um espetáculo que está em cartaz no Teatro Experimental e que tem como idealizador, dramaturgo e ator Ricardo Corrêa e como diretor Davi Reis, além de outros profissionais que juntos com estes materializaram um belo trabalho que vale muito ser visto.

Um trabalho que tem na narrativa fragmentada, com flashes que trazem para cena espaços e tempos diversos, sua força. O que, aliás, pode ser visto como uma resistência à totalização operada pela sociedade que o próprio trabalho coloca em questão. Escancarando, assim, a existência de tempos e espaços diversos no interior desse tempo-mor. Fugindo da exclusão, próprio da totalização, para pensar por associações e pela multiplicidade.

Se a força da dramaturgia está na utilização do fragmento, a da direção com sua escrita cênica estar na intensidade, nas velocidades, nas cores. No que extrapola o real da realidade em proveito de um real da cena, sem, no entanto, deixar de trazer para cena o trânsito entre um real e outro. Estar no jogo e “coreografia da cena”.

O que é posto no espetáculo como estando em perigo, me parece, é a liberdade dos modos de vidas singulares, entendida aqui como um estilo de vida, como uma estética da existência, como associações livres que dão vida a um comum que diverge de um formato político moral do Estado e seus representados, a saber, uma burguesia oca, podre, ressentida.
O espetáculo conta com uma violência que é necessária ao entendimento da transgressão em relação ao controle da sexualidade - pensada aqui pela sua modulação mais do que pela sua negação. Controle que demarca, desse modo, o destino de corpos que já não podem se enquadrar na norma sexual e política.

O espetáculo ilumina as técnicas políticas que inscrevem e classificam corpos em relação aos ordenamentos hierárquicos e economias da vida e morte, isto é, os ordenamentos biopolíticos que produzem corpos e lhes atribuem lugares, sentidos num mapa social.  

O Estado através da sua racionalidade centrada sobre a questão da vida: conservação de um estilo de vida, seu desenvolvimento e gestão, criou diversos mecanismos e instituições normalizadoras, tornando a vida um tribunal sob o qual todas as vidas que não estivessem em relação ao modelo seriam julgadas culpadas. Pior, já nasceriam com a marca da culpa, devedoras de algo que elas nem sabia o que era, mas que deviam carregar consigo para saber que eram diferentes. No campo de concentração esses diferentes pela desigualdade eram os mulçumanos, era aqueles que carregavam marcado no corpo um número.

Se no campo de concentração eles resolviam pela exterminação através das câmaras de gás, aqui eles resolvem pelo tratamento daqueles que o Estado considera parasitas, que uma vez infiltrados no corpo social podem levar arruína da sociedade, por isso do Estado formar seus médicos ou conferir a si próprio a competência de médico, capaz, assim, de restituir a saúde da sociedade removendo as causas do mal, expulsando os germes que os transportam ou mesmo incluindo, desde que se comportasse em relação à norma.

A quarentena nada mais é que o processo de imunização para que o sujeito possa retornar à sociedade sem, com isso, coloca-la em risco tumultuando seus valores, embaralhando seus mecanismos de partilha. 

Uma vida que insurja por outras vias, que não as ofertadas pela sociedade com seu Estado médico vigente, serão foco de controle e extermínio. Uma vida que se pauta pela amizade, por outros valores, pela transgressão das normas instituídas, é uma vida a ser combatida, segundo, essa sociedade que cada vez mais se mostra doente.

Nesse sentido, o trabalho ao falar homossexualidade como foco de controle por parte da sociedade em que vivemos, fala da violência contra as vidas que resistem aos enquadramentos de uma sociedade que quer tornar a vida uma sobrevida. A violência contra a população LGBTTTQIA, a população negra, a mulher é um fato. Com a violência física vem a simbólica como estratégia de inculcar subordinação e reforçar uma distinção ontológica entre seres humanos, o que qualifica uns em detrimento de outros na escala de importância para tal sociedade que esse Estado defende.

O espetáculo é uma obra instigante para pensar tudo isso e mais outras coisas que esta reflexão não tocou e nem deu conta.

Enfim, vão e façam suas próprias reflexões.

O espetáculo está no Teatro Experimental na rua Barra Funda. Toda quarta e quinta. 21 horas.


domingo, 1 de outubro de 2017

A reflexão acerca da política que a cientista política Belga Chantal Mouff faz muito me interessa. Ainda mais quando ela busca explicar a distinção entre Política e Político. Para a autora a política tem como menção o campo empírico, os fatos da ação política, ao passo que o político está relacionado à própria formação da sociedade. O político representaria um espaço de poder, conflito e antagonismos: “entendo por ‘político’ a dimensão de antagonismos que considero constitutiva das sociedades humanas, enquanto entendo por ‘política’ o conjunto de práticas e instituições por meio das quais uma ordem é criada, organizando a coexistência humana no contexto conflituoso produzido pelo político”. Para autora não existe a possibilidade de uma democracia radical sem a possibilidade do político; dos conflitos e dos antagonismos que se exerce nas esferas públicas, no espaço social, assim como, não existe a possibilidade de tal democracia sem a política, ou seja, sem instituições que possam criar, como mediadores desse conflito, espaços de coexistência.

Para Mouff, portanto, não devemos imaginar a política democrática em termos de consenso e reconciliação, mas em nos esforçar para imaginar e criar uma esfera pública vibrante, o que ela chama de “agonística”, de contestação, na qual diferentes projetos políticos hegemônicos (fixação de discursos) possam se confrontar. Porém, para que esse projeto seja possível devemos fugir da esfera moral, para aonde comumente o político é jogado, e adentar nas categorias políticas, isto é, esquerda e direita e não bem ou mal.

A autora, nesse sentido, defende um pluralismo agonístico por entender que a questão principal das práticas democrática não é eliminar o poder e sim constituir formas de poder mais compatíveis com os valores democráticos. Ela busca nos gregos o conceito de Agon para pensar esse pluralismo, pois para os gregos agon abarca vários sentidos, em particular o de luta, de competição tanto num plano verbal como físico. O modelo agonístico da democracia postulado, pela autora belga, defende que a política democrática consiste em transformar o antagonismo social em agonismo e, desse modo, transformar a luta entre inimigos em lutas entre adversários.

Todavia, me parece que o que vem sendo exercitado no nosso contexto é tudo menos tal pensamento. No Brasil o político vem sendo tomado de assalto pela figura do gestor e a política vem sendo instrumento de eliminação do outro. Em nome de certo consenso práticas autoritárias são legitimadas por tais instituições. Setores que historicamente são politizados e com isso contribuem com projetos em direção a uma democracia radical vem sofrendo todo tipo de censura, de violência. O Estado que deveria ser o mediador desse conflito, como está na nossa constituição, vem se ausentando de tal responsabilidade e, pior, por meio da figura do seu agente, incitando essa violência. Para isso, basta ver o último vídeo do gestor da maior cidade da América Latina reclamando certo limite da arte. Tendo como base de ataque o moralismo e não um pensamento racional crítico, que deveria ser o modo como o agente do Estado deve inserir-se numa discussão quando sendo ela de interesse público.

Nessa diretriz o que Estado vem fazendo é elogiar certas faculdades e rejeitar outras. Prescreve, dessa forma, condutas desejáveis e veda as “indesejáveis”. Em nome de uma perspectiva moral o Estado vem por meio do ordenamento jurídicos orientando a ação do sujeito, privilegiando certos valores e desprestigiando outros.  Decidindo sem o devido cuidado quais modos de vida devem ser estimuláveis bem como modos de criação e de fazer.


O que torna a ação artística ainda mais importante desvelando ainda mais o seu caráter político. E, portanto, necessária e urgente no mundo em que vivemos. Pois como entende Mouffe a ação artística é da ordem agonística já que opera discursivamente na dimensão da ordenação, reprodução ou MODIFICAÇÃO SOCIAL. Quando da modificação a operação não é sem riscos. 

domingo, 24 de setembro de 2017

A ciência é uma forma de conhecimento, de saber que tem como objetivo fornecer explicações teóricas profundas e abrangentes, com soluções o mais adequada possível para problemas gerados por ela própria. Ela, nesse sentido, tem uma função expansionista. Para alguns cientistas, sejam eles da exata ou das humanas, sua expansão significa a busca por um mundo melhor, um mundo que as pessoas possam viver melhor, que as descobertas possam contribuir para erradicar os males sociais etc. Mas para que as descobertas sejam possíveis, ela precisa de liberdade. Pois a mesma com sua racionalidade crítica derruba teorias formuladas antes para poder avançar. Por esse ângulo, de algum modo ela cria mundos, estabelece perspectivas.

Outra forma de conhecimento é o da arte. Na exata medida em que apresenta mundos distintos do seu. Ela como o OUTRO, ao encontrá-la, proporciona uma nova relação, um novo agenciamento. Ela, nessa perspectiva, exerce sua força pelo mundo de possíveis que carrega, nas possibilidades que o encontro com ela faz surgir: expande o individuo; expande a vida. Ela também precisa de liberdade. Pois também derruba forças conservadoras, ataca valores velhos. Ela como a ciência necessita de instituições políticas democráticas que se comprometam em salvaguardar a liberdade, em especial, a liberdade de defender a liberdade, e assim prevenir contra as formas de tirania.

Pensei tudo isso, por conta da peça que fui ver hoje, a saber, AMARELO DISTANTE. Uma peça que me apresentou o OUTRO: o escritor Caio Fernando Abreu. Um trabalho sensível. Que me tocou pelo mundo (com suas possibilidades) que surgia da vida do Caio Fernando, fazendo com que eu pensasse o meu. Que me tocou por escancarar como a história do mundo ao se encontrar com a história de cada um coagula certo individuo, deixa suas marcas. O teatro, talvez, tenha esse quê de alteridade inerente a ele. Outra coisa que chama muita atenção é o poder da palavra. O poder da palavra poética ressoando pelo espaço vazio do teatro e dela emergindo os mundos do Caio, seja ele o privado ou o público. O teatro com seu palco vazio, mas preenchido pela força da palavra. Pela força sensível da encenação ao priorizar a palavra e a partitura corpóreo-cênica. Pela força do trabalho do ator que dá vida ao mundo Caio. Saí com a sensação que, talvez, o mundo ande surdo para poesia, para as vidas paralelas, para aquelas vidas que abrem um risco de água que pode vir a ser um rio.
Como diz o texto da peça: “se a realidade nos enche com lixo, a mentalidade deve nos encher com flores” (acho que era mais ou menos isso).


Enfim, não conheço muito bem a obra e vida do Caio Fernando, mas gosto de pensar por meio do espetáculo nessas vidas que nos apresentam formas outras de estar no mundo. Para quem quiser conferir o espetáculo, ele tá o TUPS até o próximo fim de semana. Sábado às 20h e Domingo às 18h.

domingo, 17 de setembro de 2017

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa: entre uma coisa e outra há o meio


                                            (quadro: Operários; de Tarsila do Amaral)

Dizer que a esquerda e a direita se unem no reacionarismo, é Jogar a “água da bacia, com criança e tudo”, ou seja, é não conseguir distinguir uma coisa da outra. O que exige, no mínimo, colocar em perspectiva o conceito bem como as dimensões. E aqui vou tomar como perspectiva a definição de Gilles Deleuze, para quem a esquerda se caracteriza por pensar sempre de fora para dentro, nunca do umbigo para fora. Nesse sentido, uma se caracteriza pela forma conservadora (de certa forma de vida) e excludente, mesmo porque quando inclui, inclui excluindo a multiplicidade, as singularidades; inclusão sem resíduos, perspectiva unilateral, reproduzindo-se pela homogeneização, pelo padrão, que não foi e não é constituído pela maioria numérica, mas por uma minoria maior econômico e politicamente. Outra coisa são forças políticas que criticam essa ordem estabelecida, identificando-se com lutas por transformações socializantes. Sendo uma multiplicidade fragmentária de corpos necessitados e excluídos, uma fratura intensiva: nem pode ser incluído no todo e nem pertencer ao conjunto que está desde sempre incluído. O que requer pensar o lugar de onde estão falando e sobre o que estão reivindicando. Uma coisa é uma minoria não numérica pretender ser ouvida, tornando sua pretensão um grito, grito, aliás, que incomoda porque demonstra, entre outras coisas, a indignidade de falar pelos outros. Os que reivindicam têm sua fala e sua potência. A questão é saber se os mecanismos que são utilizados pela esfera reacionária para tornar inaudíveis esses gritos, essas pretensões, não são de alguma maneira, empregados por parte daqueles que muitas vezes habitam uma dimensão mais a esquerda, mas que vive numa espécie de esquizofrenia ou infantilização, fruto (não sem luta, me parece) de uma violência simbólica de um sistema que se reproduz nas instituições dominantes com seus aparelhos de objetivação.


Numa esfera o que é posto é a eliminação da multiplicidade, na outra é a democratização, que é mais do que acesso, é também a participação constituinte, por isso conflitosa, mas também criativa porque exige a criação de espaços e tempos que comportem essa multiplicidade, exige o encontro, o debate, a troca. Está-se falando, nesse sentido, para além dos indivíduos isolados, ou seja, está-se falando de uma estética da existência enquanto formas de vidas: maneiras de fazer, ver e ouvir. Modos de encontros e, por isso, de dissenso, e tudo que certa esfera reacionária não quer é dissenso, dissidentes.