segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A gente SUBMERSA: um poema teatral


A gente SUBMERSA: um poema teatral

Encontramos numa das obras de Walter Benjamin a seguinte frase: “A forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”. Podemos pensar essa frase do Benjamin para discorrer acerca da conformação de um tipo de sociedade que se assenta sobre uma determinada base material e o modo como esta interação interfere, pelo seu condicionamento, na transformação social e antropológica; fabricando novas figuras de subjetividade, figuras que estão relacionadas com o ver, sentir e fazer, emergindo daí certos tipos de coletividades. 

Nesse sentido, talvez, nenhum outro sistema social veio a interferir tanto, ou melhor, alterar tanto algumas das mais íntimas e pessoais características da existência cotidiana como a modernidade. Os modos de vidas produzidos pela modernidade desvencilharam os indivíduos de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes. Sendo inerente ao ambiente moderno o movimento. Entretanto, tal ambiente não se constitui sem contradições. Marx e Engels já chamavam atenção para o fato da modernidade ser em si um paradoxo na medida em que ela por um lado une, transforma, integra, por outro, ela nos despeja, a todos, num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno, nesse sentido, é fazer parte de do universo no qual, como disse os autores do Manifesto Comunista: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”.

A modernidade edificou um espaço-tempo próprio, o que significou submeter outros espaços tempos à sua maneira. Dito de outra forma, seu processo, utilizando-se de certa racionalidade invocada para ordenar o espaço tempo, acaba expulsando todos aqueles que pelo modo como habitam a terra e se relaciona com o mundo de maneira distinta a ofertada por ele, são considerados inconvenientes ou mesmo ameaçadores.

O espetáculo A gente SUBERSA em cartaz no Teatro do Incêndio, parece ir à contramão desta dinâmica. A primeira cena já dá o tom e a batida do que vai ser o espetáculo. Evocando a presença de outra temporalidade.

O enredo é conduzido por três personagens, figuras alegóricas da sabedoria popular, que atravessam os tempos seguindo pelo mundo contando suas histórias e as histórias do mundo. Histórias que eles viveram? Histórias que eles inventaram? Não importa. O que vai ficando claro durante o percurso é cada vez mais a impossibilidade da existência dessas figuras assim como o que elas representam enquanto forma de vida no ambiente que é próprio da modernidade, a saber, a metrópole, a cidade.

Ambiente que se organiza pelo trânsito, pela iminência das coisas, das relações, pelas vidas sem relatos. Pelos “não lugares”: espaços de circulação, diametralmente oposto ao lar, à residência, ao espaço personalizado. Aliás, muito bem representado na cena do o coro de rosto em série... Também de um corpo, de uma unidade, de uma não singularidade. O indivíduo da metrópole de uma sociedade sem relato é só, mas junto com outros, onde a relação se dá de maneira contratual representada por símbolos: cartão de crédito, bilhete de metrô, documentos – careteira de motorista ou qualquer outro. Uma identidade sem pessoa. Um ser sem presença.

Aqueles que carregam, ou melhor, aqueles que são a materialidade de uma sabedoria, de um tempo que não o tempo da racionalidade técnica, mas de um tempo da natureza, do tempo da criação de vidas que habitam, de distintos modos, ou vivem uma temporalidade incerta, uma vida na força de um ritual, para esses não resta nada nesse mundo a não ser a invisibilidade. Todavia, se não é nesse mundo que sua força vai ser presente (isso é forte na peça) é na evocação da sua ancestralidade: no uso de máscaras, na pintura do corpo, como se fosse uma segunda pele que habita aquela primeira, que veremos a elevação da corporeidade a uma outra dimensão. É possível encontrar armas durante a fuga, em meio ao próprio campo de batalha.

A peça parece ser um grito e, por conseguinte, um combate a esses não lugares e essas formas de vida sem pessoa. A um sistema que vive de saltos para frente num ritmo vertiginoso sem deixar raízes, que obriga meramente a sobreviver por um dia. Uma rebelião contra o esquecimento de onde se vem, contra a sociedade de massa que se edifica pela colonização do imaginário e do corpo. Contra um processo civilizatório que age sobre o corpo fazendo-o volta-se para si ao invés de abri-lo para o mundo. Ora, não podemos esquecer que uma das formas do poder agir sobre o sujeito é tornar o corpo sozinho, o fazer falar a língua dos códigos que nele se inscrevem.

O trabalho parece querer ser, por meio da sua investigação estética cultural, um terreno de contestações sobre as condições da vida, dessas vidas distintas do modelo engendrado pela modernidade capitalista.

A peça é um elogio à “inconstância selvagem”: entendido aqui como a potência do sensível, da força ritualística da sabedoria. Como um conjunto de partes heterogêneas que não se deixam unificar. É uma recusa à modernização dos sentidos, isto é, uma recusa a predicados, a formas fixas. Mais próximo, portanto, de um sentir, de um emergir-se ao mundo, de um estar dentro e não diante. 

A peça é um canto ao corpo. Ao corpo como profusão do sensível. A um corpo que se inclui no movimento das coisas e se mistura a elas com todos os seus sentidos. O trabalho do grupo é uma ode a um estado vibrante que faz passar o indivíduo ou o coletivo de um estado a outro. Não por acaso a peça é um cântico, uma dança, uma viagem fora dos códigos que reduz o corpo a representações. É uma viagem em direção a um “corpo puro” isto é, “incodificado”, possuidor de energias livres que retorna à natureza para desempenhar o papel de permutador de código outros.

Muito próximo, aliás, a um pensamento de um teatro da crueldade ou o teatro ritualístico de Artaud. Pois o teatro do Incêndio é um teatro do espaço poético onde as imagens matérias são equivalentes às imagens das palavras. O estado poético que emerge das cenas do A gente SUBMERSA é próxima uma poesia concreta, isto é, algo é produzido objetivamente através da presença ativa em cena. É um teatro que fala diretamente ao espírito. Trata-se, nesse sentido, da exposição do teatro por si mesmo, como um arte no espaço e no tempo, com corpos humanos e todos os recursos que o teatro inclui e o faz ser uma obra de arte total.

Tudo isso só sendo possível graças à dimensão antropofágica muito forte no grupo, haja vista a incorporação musical que vai das matrizes populares brasileiras e africanas até o pop estadunidense de Michael Jackson ou o funk das metrópoles. Há no grupo uma investigação estética cultural que leva a uma certa brasilidade revolucionária.
A peça é uma “luta dissimilação”, que enseja a criação de distancias em relação a certos modos de vida, empregando para isso os instrumentos da diferença linguística, ritual, histórica e de atitudes.  

Artaud dizia que o verdadeiro teatro era aquele que fazia escorrer pelas brechas da cultura ocidental, com suas formas petrificantes, as sombras que guardam nelas as vibrações da vida. Parece ser o que convoca a encenação de A gente SUBMERSA. Nesse sentido podemos retomar ao início, à citação do Benjamin e pensar que uma saída para criação de uma percepção outra esteja no espaço das artes. De uma arte engajada com a vida, com o mundo.

Enfim, a peça está em cartaz e pode ser vista no Teatro do Incêndio que fica na Rua Treze de Maio no Bexiga.  Todo sábado às 20h e Domingo às 19h.

O trabalho é muito mais do que tudo isso, ainda mais pela sua força artística. A minha escrita é uma traição ao espetáculo. Vão ver e saberão porque.


Vale conferir e muito. 

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