sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Bug Chaser: Coração purpurinado Ou a Vida na Berlinda


Bug Chaser: Coração purpurinado Ou a Vida na Berlinda

Até aonde vai um corpo na luta para expressar-se na sua potência, no seu inacabamento, no seu brilho, na constituição de uma vida livre das amarras, da imobilidade, subvertendo assim, a docilidade e a disciplina, o controle da macro-engrenagem do poder capitalista que opera pela sujeição social e pela servidão maquínica?

Até aonde consegue ir um corpo que explode a medida, ou melhor, até aonde o corpo suporta ir, num Estado que ordena um tipo de sociedade e que se edifica se reproduz pelo exercício de poder que toma a vida como um fato, natural, biológico, ou como diria Giorgio Agamben como vida nua, como sobrevida, como uma vida exposta à ação imunizante protetora do poder, uma vida sem qualquer proteção no que se refere a um poder que dirige, manipula e deixa morrer, quando não mata!

O que pode um corpo ou suporta - que fique claro que não é o corpo da norma, da vida qualificada - numa sociedade que age pela privação de alguns enquanto concede a outros o acesso ao que seria por direito (e aqui não se refere ao direito jurídico) comum a todos e todas, portanto, à partilha desse comum, ao pertencimento, a reciprocidade?

O que estão fazendo com a vida. Com as vidas paralelas que se expressam pela experimentação, que divergem de um modelo imposto, que por ser tão radical na sua singularidade não podem ser reunidas e nem parte de um mesmo lugar e tão pouco devem ser copiadas, ser um exemplo, o que não significa que elas devam ser exterminadas, ou colocadas sob correção suas condutas através de um saber-poder médico e biológico que está a serviço de uma auto-afirmação da parcela daqueles que se intitulam homens de bens, detentores de uma moral que legitima suas ações e que tratam tudo aquilo que divergem deles como doença.

Parece-me que todas essas questões e mais algumas percorrem o espetáculo Bug Chaser: coração purpurinado. Um espetáculo que está em cartaz no Teatro Experimental e que tem como idealizador, dramaturgo e ator Ricardo Corrêa e como diretor Davi Reis, além de outros profissionais que juntos com estes materializaram um belo trabalho que vale muito ser visto.

Um trabalho que tem na narrativa fragmentada, com flashes que trazem para cena espaços e tempos diversos, sua força. O que, aliás, pode ser visto como uma resistência à totalização operada pela sociedade que o próprio trabalho coloca em questão. Escancarando, assim, a existência de tempos e espaços diversos no interior desse tempo-mor. Fugindo da exclusão, próprio da totalização, para pensar por associações e pela multiplicidade.

Se a força da dramaturgia está na utilização do fragmento, a da direção com sua escrita cênica estar na intensidade, nas velocidades, nas cores. No que extrapola o real da realidade em proveito de um real da cena, sem, no entanto, deixar de trazer para cena o trânsito entre um real e outro. Estar no jogo e “coreografia da cena”.

O que é posto no espetáculo como estando em perigo, me parece, é a liberdade dos modos de vidas singulares, entendida aqui como um estilo de vida, como uma estética da existência, como associações livres que dão vida a um comum que diverge de um formato político moral do Estado e seus representados, a saber, uma burguesia oca, podre, ressentida.
O espetáculo conta com uma violência que é necessária ao entendimento da transgressão em relação ao controle da sexualidade - pensada aqui pela sua modulação mais do que pela sua negação. Controle que demarca, desse modo, o destino de corpos que já não podem se enquadrar na norma sexual e política.

O espetáculo ilumina as técnicas políticas que inscrevem e classificam corpos em relação aos ordenamentos hierárquicos e economias da vida e morte, isto é, os ordenamentos biopolíticos que produzem corpos e lhes atribuem lugares, sentidos num mapa social.  

O Estado através da sua racionalidade centrada sobre a questão da vida: conservação de um estilo de vida, seu desenvolvimento e gestão, criou diversos mecanismos e instituições normalizadoras, tornando a vida um tribunal sob o qual todas as vidas que não estivessem em relação ao modelo seriam julgadas culpadas. Pior, já nasceriam com a marca da culpa, devedoras de algo que elas nem sabia o que era, mas que deviam carregar consigo para saber que eram diferentes. No campo de concentração esses diferentes pela desigualdade eram os mulçumanos, era aqueles que carregavam marcado no corpo um número.

Se no campo de concentração eles resolviam pela exterminação através das câmaras de gás, aqui eles resolvem pelo tratamento daqueles que o Estado considera parasitas, que uma vez infiltrados no corpo social podem levar arruína da sociedade, por isso do Estado formar seus médicos ou conferir a si próprio a competência de médico, capaz, assim, de restituir a saúde da sociedade removendo as causas do mal, expulsando os germes que os transportam ou mesmo incluindo, desde que se comportasse em relação à norma.

A quarentena nada mais é que o processo de imunização para que o sujeito possa retornar à sociedade sem, com isso, coloca-la em risco tumultuando seus valores, embaralhando seus mecanismos de partilha. 

Uma vida que insurja por outras vias, que não as ofertadas pela sociedade com seu Estado médico vigente, serão foco de controle e extermínio. Uma vida que se pauta pela amizade, por outros valores, pela transgressão das normas instituídas, é uma vida a ser combatida, segundo, essa sociedade que cada vez mais se mostra doente.

Nesse sentido, o trabalho ao falar homossexualidade como foco de controle por parte da sociedade em que vivemos, fala da violência contra as vidas que resistem aos enquadramentos de uma sociedade que quer tornar a vida uma sobrevida. A violência contra a população LGBTTTQIA, a população negra, a mulher é um fato. Com a violência física vem a simbólica como estratégia de inculcar subordinação e reforçar uma distinção ontológica entre seres humanos, o que qualifica uns em detrimento de outros na escala de importância para tal sociedade que esse Estado defende.

O espetáculo é uma obra instigante para pensar tudo isso e mais outras coisas que esta reflexão não tocou e nem deu conta.

Enfim, vão e façam suas próprias reflexões.

O espetáculo está no Teatro Experimental na rua Barra Funda. Toda quarta e quinta. 21 horas.


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