Bug Chaser: Coração
purpurinado Ou a Vida na Berlinda
Até aonde vai um corpo na
luta para expressar-se na sua potência, no seu inacabamento, no seu brilho, na
constituição de uma vida livre das amarras, da imobilidade, subvertendo assim,
a docilidade e a disciplina, o controle da macro-engrenagem do poder
capitalista que opera pela sujeição social e pela servidão maquínica?
Até aonde consegue ir um
corpo que explode a medida, ou melhor, até aonde o corpo suporta ir, num Estado
que ordena um tipo de sociedade e que se edifica se reproduz pelo exercício de
poder que toma a vida como um fato, natural, biológico, ou como diria Giorgio Agamben
como vida nua, como sobrevida, como uma vida exposta à ação imunizante
protetora do poder, uma vida sem qualquer proteção no que se refere a um poder
que dirige, manipula e deixa morrer, quando não mata!
O que pode um corpo ou suporta
- que fique claro que não é o corpo da norma, da vida qualificada - numa
sociedade que age pela privação de alguns enquanto concede a outros o acesso ao
que seria por direito (e aqui não se refere ao direito jurídico) comum a todos
e todas, portanto, à partilha desse comum, ao pertencimento, a reciprocidade?
O que estão fazendo com a
vida. Com as vidas paralelas que se expressam pela experimentação, que divergem
de um modelo imposto, que por ser tão radical na sua singularidade não podem
ser reunidas e nem parte de um mesmo lugar e tão pouco devem ser copiadas, ser
um exemplo, o que não significa que elas devam ser exterminadas, ou colocadas
sob correção suas condutas através de um saber-poder médico e biológico que
está a serviço de uma auto-afirmação da parcela daqueles que se intitulam
homens de bens, detentores de uma moral que legitima suas ações e que tratam
tudo aquilo que divergem deles como doença.
Parece-me que todas essas
questões e mais algumas percorrem o espetáculo Bug Chaser: coração purpurinado.
Um espetáculo que está em cartaz no Teatro Experimental e que tem como
idealizador, dramaturgo e ator Ricardo Corrêa e como diretor Davi Reis, além de
outros profissionais que juntos com estes materializaram um belo trabalho que
vale muito ser visto.
Um trabalho que tem na
narrativa fragmentada, com flashes que trazem para cena espaços e tempos
diversos, sua força. O que, aliás, pode ser visto como uma resistência à
totalização operada pela sociedade que o próprio trabalho coloca em questão.
Escancarando, assim, a existência de tempos e espaços diversos no interior
desse tempo-mor. Fugindo da exclusão, próprio da totalização, para pensar por
associações e pela multiplicidade.
Se a força da dramaturgia
está na utilização do fragmento, a da direção com sua escrita cênica estar na
intensidade, nas velocidades, nas cores. No que extrapola o real da realidade
em proveito de um real da cena, sem, no entanto, deixar de trazer para cena o
trânsito entre um real e outro. Estar no jogo e “coreografia da cena”.
O que é posto no espetáculo
como estando em perigo, me parece, é a liberdade dos modos de vidas singulares,
entendida aqui como um estilo de vida, como uma estética da existência, como
associações livres que dão vida a um comum que diverge de um formato político moral
do Estado e seus representados, a saber, uma burguesia oca, podre, ressentida.
O espetáculo conta com uma violência
que é necessária ao entendimento da transgressão em relação ao controle da
sexualidade - pensada aqui pela sua modulação mais do que pela sua negação.
Controle que demarca, desse modo, o destino de corpos que já não podem se
enquadrar na norma sexual e política.
O espetáculo ilumina as
técnicas políticas que inscrevem e classificam corpos em relação aos
ordenamentos hierárquicos e economias da vida e morte, isto é, os ordenamentos
biopolíticos que produzem corpos e lhes atribuem lugares, sentidos num mapa
social.
O Estado através da sua
racionalidade centrada sobre a questão da vida: conservação de um estilo de
vida, seu desenvolvimento e gestão, criou diversos mecanismos e instituições
normalizadoras, tornando a vida um tribunal sob o qual todas as vidas que não
estivessem em relação ao modelo seriam julgadas culpadas. Pior, já nasceriam
com a marca da culpa, devedoras de algo que elas nem sabia o que era, mas que
deviam carregar consigo para saber que eram diferentes. No campo de
concentração esses diferentes pela desigualdade eram os mulçumanos, era aqueles
que carregavam marcado no corpo um número.
Se no campo de concentração eles
resolviam pela exterminação através das câmaras de gás, aqui eles resolvem pelo
tratamento daqueles que o Estado considera parasitas, que uma vez infiltrados
no corpo social podem levar arruína da sociedade, por isso do Estado formar
seus médicos ou conferir a si próprio a competência de médico, capaz, assim, de
restituir a saúde da sociedade removendo as causas do mal, expulsando os germes
que os transportam ou mesmo incluindo, desde que se comportasse em relação à
norma.
A quarentena nada mais é que
o processo de imunização para que o sujeito possa retornar à sociedade sem, com
isso, coloca-la em risco tumultuando seus valores, embaralhando seus mecanismos
de partilha.
Uma vida que insurja por
outras vias, que não as ofertadas pela sociedade com seu Estado médico vigente,
serão foco de controle e extermínio. Uma vida que se pauta pela amizade, por
outros valores, pela transgressão das normas instituídas, é uma vida a ser
combatida, segundo, essa sociedade que cada vez mais se mostra doente.
Nesse sentido, o trabalho ao
falar homossexualidade como foco de controle por parte da sociedade em que
vivemos, fala da violência contra as vidas que resistem aos enquadramentos de
uma sociedade que quer tornar a vida uma sobrevida. A violência contra a população
LGBTTTQIA, a população negra, a mulher é um fato. Com a violência física vem a
simbólica como estratégia de inculcar subordinação e reforçar uma distinção
ontológica entre seres humanos, o que qualifica uns em detrimento de outros na
escala de importância para tal sociedade que esse Estado defende.
O espetáculo é uma obra
instigante para pensar tudo isso e mais outras coisas que esta reflexão não
tocou e nem deu conta.
Enfim, vão e façam suas
próprias reflexões.
O espetáculo está no Teatro
Experimental na rua Barra Funda. Toda quarta e quinta. 21 horas.
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