quarta-feira, 15 de novembro de 2017

SIETE GRANDE HOTEL: a sociedade das portas fechadas. Ou um poema dramático-trágico.




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SIETE GRANDE HOTEL: a sociedade das portas fechadas. Ou um poema dramático-trágico.

Não é só nos livros que encontramos profundas reflexões sobre os efeitos da guerra e do poder político. Também encontramos na arte uma chave para pensar a guerra e seus efeitos sobre o território, a população de uma determinada sociedade. Basta lembrarmo-nos do famoso quadro pintado em branco e preto de Pablo Picasso: Guernica.

Outro lugar que encontramos inúmeras representações acerca dos efeitos da guerra bem como do poder político é no teatro. É só recordar, para ficar em um exemplo, a obra do dramaturgo, diretor, poeta alemão Bertolt Brecht.

Do teatro, a partir da sua relação com a realidade, tem emergido belos trabalhos, principalmente de artistas e grupos que tomam posições face às iniquidades sociais, que são engajados com a vida. Parece-me ser o caso do grupo Redimunho de Investigação Teatral. E mais ainda, seu novo espetáculo: SIETE GRANDE HOTEL: a sociedade das portas fechadas. Um espetáculo que tem como nuvem histórica os casos dos soldados de borracha, nome dado aos brasileiros que entre 1943/1945 foram alistados e transportados para Amazônia com a missão de extrair borracha para os Estados Unidos. O acordo de Washington bem como as lutas empreendidas pelos movimentos populares a favor de moradias e terras.

Um caleidoscópio cênico. Um trabalho repleto de imagens e simbolismo, emergindo daí a teatralidade, isto é, a emancipação do teatro ao texto, sem com isso diminuir a força da narrativa, mas pelo contrário, criando a espacialidade adequada para sua execução. Ao mesmo tempo um trabalho de estilo tardio: algo que estar no presente mais estranhamente apartado dele, onde um presente brutal é substituído por um outro tempo. Uma espécie de inconciliabilidade, de plano de ação para falar do presente sem necessariamente se submeter a um certo modismo cênico em vigor no presente.

O trabalho pode ser pensado como um híbrido dos diversos gêneros presente no teatro enquanto forma bem como a partir da vizinhança com outras linguagens. Haja vista as instalações dos quartos-quadros. O que parece dá mais força ao trabalho. Ao estrutura-lo em um prólogo, sete quadros-quartos-instalações e um epílogo, muito próximo, aliás, ao expediente épico do Brecht, no sentido de cada cena-quadro-quarto, valer por si e pela potencia da narrativa. Sem contar os entres de uma cena para outra que a encenação encontrou, por exemplo, a personagem da empregada e o deslocamento dela pelas cenas. Criando camadas de temporalidades. Não bastassem tais procedimentos, a força do drama (no sentido de um acontecimento no presente, numa representação pela ação) humaniza os personagens sem perder a dimensão que produz a desumanização, quer dizer, a guerra e a política destituída de seu caráter de relação com a pólis (o viver-junto) ao mesmo tempo em que se resume a uma preocupação econômica. Todavia, se o dramático na sua força de acontecimento violento, de descrição de uma situação se desenvolve, não se pode falar o mesmo em relação à sua forma, ou seja, o drama sofre um golpe ao ser substituído por quadros. A lógica clássica da fábula, fundada na progressão constante da ação até a resolução final do conflito se ver abalada. Um trabalho contaminado de gêneros, estéticas e culturas, que o aproxima ao um poema dramático pela sua força de diluição das fronteiras acimas citadas e ao mesmo tempo trágico pela dimensão cíclica que ele traz da política enquanto conflito permanente. Repleto de violência, de perda de conexão, de homens reduzidos ao silencio, mas também de contestação.

Michel Foucault no seu livro “Em defesa da sociedade” define a política como a guerra continuada por outros meios, invertendo a proposição de um dos mais criativos estudiosos e estrategista da guerra, a saber, o general prussiano Carl Von Clausewitz. Para este a “a guerra é a continuação da politica por outros meios”.

A guerra ajuda Foucault a analisar as relações de poder. Para o pensador francês a análise do poder tem que ser feita numa base de relação de força, de combate, de enfrentamento, de guerra. O poder sendo, portanto, a guerra continuada por outros meios.  O aforismo invertido nos ajuda a pensar acerca do modo como certo poder político se estabelece numa sociedade como nossa, isto é, como ele ancora uma certa relação de força estabelecida em momentos históricos. Instituindo privilégios para alguns em detrimento de outros.  E mais: escancarando como é ilusório pensar que o poder político para a guerra e constitui a paz neutralizando o desequilíbrio produzido pela guerra.  O que o poder político tem como função é “reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma guerra silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos uns dos outros”.

Nesse sentido, a política como a guerra continuada, é a “sanção e a recondução do desiquilíbrio, das forças manifestas na guerra”. A guerra da mesma maneira que a política como a guerra continuada por outros meios produz a classe dos despossuídos: sejam eles escravos, soldados perdidos numa intensa desterritorialização geográfica quanto psíquica. Produzem vidas precárias, destituídas elas mesmas da qualificação de vidas. E, portanto, lesada de um estatuto de vida política. Produz mecanismos e parasitas políticos que vivem do trabalho alheio.

Entretanto, como define Foucault, a política é relação de poder, ela é então combate, enfrentamento. Daí pode surgir resistências. Movimentos insurgentes descortinando essa falsa paz.

No interior desse grande hotel estão sendo gestados, e é isso que observaremos ao vivenciar o espetáculo, um começo, um recomeço de uma luta coletiva, poderíamos dizer de uma “hipótese comunista”, não como ideia reguladora a priori, mas um movimento necessário de reação a um conjunto de antagonismos sociais.  

A primeira cena, ainda no espaço externo, quer dizer, na rua, é um canto a uma ação coletiva. A um enfrentamento. A cena seguinte é uma enunciação do que virá ao mesmo tempo em que é a voz totalizadora do sindico. Ele, a propósito, é o único que tem o figurino completo, podendo ser pensado como uma alegoria do patrão.  Enquanto em todos os outros personagens faltam alguma peça de roupa. Seres incompletos pela força da desigualdade. O povo num regime totalitário, o povo numa democracia oligárquica. Para não falar no sistema econômico em vigor. 

O primeiro quarto poderia ser tranquilamente uma pintura do Portinari, pela sua força imagética e simbólica. Uma cena com dois planos. Acima, aqueles que se beneficiaram dos diversos modos de exploração. A imagem de um casal burguês à mesa. Fora da mesa a empregada. Abaixo, dois despossuídos. Um tecendo a bandeira que será o símbolo da luta coletiva. O outro sufocado por tudo, pela demora em reagir, pela vida que tem. A água é metáfora desse homem sendo sufocado. Sobre sua cabeça se assenta os exploradores.

Todo o trabalhado não pode ser pensado fora do registro dos atores e atrizes. De como essas alegorias são atualizadas por meio da criação sensível de cada um e cada uma. Uns buscando um registro mais próximo de uma composição do teatro do absurdo, outros num registro mais corporal, violento e poético. Não poder ser pensada fora do registro musical. Que, aliás, tem na musicalidade latina americana o seu referencial. O seu canto por reconhecimento. A luta. Não pode ser pensado fora do registro de orquestração da encenação bem como da poética do texto. É um espetáculo onde as partes e todo se mesclam. 

Não analisarei cena por cena, até gostaria, mas isso significaria muitas páginas, além da perda do ser afetado pela vivência primeira de cada cena.

O que, talvez, seja interessante pensar através do espetáculo é o que está sendo formado e imaginado no interior desse grande hotel, dessa sociedade de portas fechadas. Davi Kopenawa nos alerta sobre “a queda do céu” ao pensar sobre os riscos que a sociedade organizada por esse sistema político corre ao tornar o povo em povo-mercadoria. Podemos utilizar a expressão do Davi também, talvez, como um vislumbre de um horizonte da queda daqueles que se assentam sobre nossas cabeças como está representado na peça.

O espetáculo é a uma força cênica e é também um canto para levantar nossos fardos e seguirmos. O espetáculo acaba nos apresentando a rua. Onde tudo começou. O que nos revela o caráter cíclico da política, da guerra. Da ordem e da desordem dos tempos. Dos pesos dos tempos. Estando aí o caráter trágico da vida. Esse eterno viver em conflito. Essa eterna certeza da instabilidade das coisas. 

Enfim, um trabalho para ser visto, vivido e conversado.





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