Pensamento de uma madrugada em estudo
Dias
atrás fui ver o espetáculo Antígona que estava no SESC Consolação e uma frase do
espetáculo ficou martelando na minha cabeça, mas que também não lembro de
certeza se era a que segue “eu crio pontes para encontrar o outro e assim
derrubar barreiras”. Saí de lá com essa frase que, de novo, não tenho certeza se
era assim mesmo e com a sensação ainda mais forte da importância da cultura
para o viver-junto. Claro que a sensação não vem só desse espetáculo, mas de
todos os outros e da pesquisa por outras formas de representação da vida em sociedade,
que bem ou mal me servem de ferramentas para poder refletir acerca do viver no
mesmo barco, isto é, na mesma sociedade. Levando em conta a dificuldade que é esse
viver-junto.
Roland
Barthes tem uma imagem bem ilustrativa num dos seus livros quanto ao viver
junto. É mais ou mais assim: Uma pessoa X um dia está na janela da sua casa
observando a paisagem urbana e os transeuntes. Quando de repente fixa seus
olhos na caminhada de uma mãe com seu filho que é puxado pela mão. A mãe
caminha rápido demonstrando certa pressa, como se tivesse hora marcada para
chegar num compromisso. O filho pelo contrário, caminha como se contemplasse a
paisagem pela primeira vez, num estado de deriva.
A
força da mãe é maior que a do filho. Ela o puxa pela mão, ele querendo ou não
adapta-se ao ritmo da caminhada dela. O poder nos diz Barthes, passa pela disrritmia,
a heterorritmia. É pondo juntos dois ritmos diferentes que se criam profundos
distúrbios. Justificando as mais cruéis repressões. Que poderiam ser evitadas
se não fosse próprio de um poder político querer impor por diversas maneiras um
ritmo único, o seu ritmo. No entanto, o autor também chama atenção para a
experiência da idiorritmia, ou seja, aquilo que é próprio, que foge do código,
do modo como o sujeito se insere no código social (ou natural). Uma espécie de
movimento aberrante em prol de novas existências. Mas também um o entendimento da
relação de poder como uma relação de força, portanto, como algo que possível de
não se deixar capturar, que permite construir linhas de fuga, criar outras
maneiras de viver-junto, de tecer a vida. É fácil? Não. Requer muito trabalho.
Exige-se muita luta, exige-se que a força do imaginário aja sobre a maneira de
viver, de se instituir, de fazer e de se fazer das coletividades
social-históricas – e, mais particularmente, a maneira de integrar o indivíduo
à vida coletiva. Entendendo o integrar aqui não como um mero ato anônimo ou de
justaposição. Mas o imaginar e o concretizar certo co-pertencimento pela
articulação, pelo esforço de imaginar a articulação de diversos grupos, indivíduos,
movimentos que em si lutam pelas suas demandas individuais, mas que podem imaginar
estratégias que os unam contra aquela força que os segmentam para os oprimirem,
que os individuam para melhor controlar. De maneira a formar uma coletividade
de singularidades concreta que rivalizará e terá força suficiente para constituir
instituições que não mais reproduzam a desigualdade; produzindo e reproduzindo valores
que enaltece um estilo de vida individual e coletivo que é posta a trabalhar a
favor de um sistema que escraviza seja pela venda da força de trabalho, seja
pela cooperação de um imaginário que está a serviço do mercado, do lucro, do
capital.
Aqui
podemos, talvez, falar da política cultural e da política da cultura. Pois
temos que ter consciência da cultura como fato político. Que o mundo da cultura
tem exigências, obrigações, poderes de natureza política. Maneira pela qual
temos que tratar de saber qual a direção dessas exigências, a direção desses
poderes. Uma política cultural no governo não é isenta de cálculo, de diretrizes,
programas, imposições que provêm muitas vezes de políticos que são ali a
representação de um sistema econômico, o representante dos interesses desse
sistema. E que por conta disso se coloca na maneira como participa da vida
política, como um obstáculo para o desenvolvimento da cultura, pois isso poderia
significar a contestação da sua própria figura enquanto profissional daquele
setor bem como do sistema que representa.
É
dessa contestação que nasce uma regra de conduta para este homem de cultura que
foi imaginado, experimentado, esculpido, dado uma forma. Uma regra de agir na
sociedade de modo identificar os obstáculos para o desenvolvimento da cultura e
assim poder removê-los. Comprometendo-se com a vida da política, com a dimensão
política da vida. O que não se confunde com a profissão de político. A política
que ele se faz portador é a expressão autônoma e irresistível da cultura na
vida social, ou seja, uma política feita com fins para cultura, para o
desenvolvimento da cultura e não feito por políticos para fins políticos, isto
é, para fins de políticos com interesse econômicos, para fins da política como
polícia; controle e regulação das condutas.
Uma
política da cultura como defesa da liberdade. “Da promoção da liberdade e,
portanto, uma defesa e uma promoção das instituições estratégicas da liberdade”.
A consciência do valor da liberdade é fundamental para o desenvolvimento da
cultura e, por conseguinte, do pensamento e da formação da sociedade. Renunciar
a essa certeza é colocar em evidencia os princípios do retrocesso cujas
consequências verificam-se mundo a fora.
A
política da cultura é uma posição de abertura em direção às posições
filosóficas, ideológicas, mentais diferentes. É um abrir-se para o outro, que não necessariamente significa
ser o outro uma pessoa. Pode ser uma ideia, uma sensação, um afecto. Ou mesmo
algo que não se sabe ao certo o que é a princípio, não se consegue nominar, mas
que se conserva pelo corpo, o lançando a experimentar encontros. Conexões outras
que não as ofertadas pela ordem da cultura da polícia. É o criar pontes para o
encontro, para assim derrubar os muros, os obstáculos. É derrubar os
significados que são leis e que não se deixam pensar fora do seu decreto, ou
seja, é preciso criar novos significados, novos esquemas representativos imaginários
permitindo vislumbrar uma vida fora da cristalização vazia e pobre que a mesma
se encontra constantemente capturada.
Talvez, a arte seja um dos caminhos possíveis para isso na exata mediada em que
ela provoca um choque e por isso mesmo um despertar. Sua intensidade e sua
grandeza estando indissociáveis de um abalo, de uma oscilação do sentido
estabelecido. Aliás, isso muito se aproxima do pensamento do filósofo francês Jacques Rancière para quem a luta coletiva por emancipação nunca se dá separada de uma nova experiência de vida e de capacidade individual. Para ele a emancipação social passa necessariamente por uma emancipação estética, por uma ruptura com as maneiras de sentir, de ver e falar. Passa pela construção de novas capacidades de articulação micropolítica de modos de vida capaz de proporcionar uma rede de produções estéticas como um princípio de imaginação ativa.
Não
existe transformação social sem criação cultural. O que nos faz entender um
pouco a estratégia da política cultural em vigor. E o fato da cultura ser um campo muitíssimo
importante de disputa. Tornando-se necessário o desvendar das raízes sociais
pelas quais os interesses políticos e econômicos com seu objetivo prático de
manutenção da ordem vigente e dos privilégios daí decorridos, operam uma
naturalização desta realidade. A disputa é pelo imaginário, pelo sensível, pelo que daí se coagulará em formas de vidas. Em formas sociais.