A gente SUBMERSA: um poema teatral
Encontramos numa das
obras de Walter Benjamin a seguinte frase: “A forma de percepção das
coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”.
Podemos pensar essa frase do Benjamin para discorrer acerca da conformação de
um tipo de sociedade que se assenta sobre uma determinada base material e o
modo como esta interação interfere, pelo seu condicionamento, na transformação
social e antropológica; fabricando novas figuras de subjetividade, figuras que
estão relacionadas com o ver, sentir e fazer, emergindo daí certos tipos de
coletividades.
A modernidade edificou um
espaço-tempo próprio, o que significou submeter outros espaços tempos à sua
maneira. Dito de outra forma, seu processo, utilizando-se de certa racionalidade
invocada para ordenar o espaço tempo, acaba expulsando todos aqueles que pelo
modo como habitam a terra e se relaciona com o mundo de maneira distinta a ofertada por ele, são considerados inconvenientes
ou mesmo ameaçadores.
O espetáculo A gente SUBERSA em cartaz no Teatro do
Incêndio, parece ir à contramão desta dinâmica. A primeira cena já dá o tom e a
batida do que vai ser o espetáculo. Evocando a presença de outra temporalidade.
O enredo é conduzido por três
personagens, figuras alegóricas da sabedoria popular, que atravessam os tempos
seguindo pelo mundo contando suas histórias e as histórias do mundo. Histórias
que eles viveram? Histórias que eles inventaram? Não importa. O que vai ficando
claro durante o percurso é cada vez mais a impossibilidade da existência dessas
figuras assim como o que elas representam enquanto forma de vida no ambiente
que é próprio da modernidade, a saber, a metrópole, a cidade.
Ambiente que se organiza
pelo trânsito, pela iminência das coisas, das relações, pelas vidas sem relatos.
Pelos “não lugares”: espaços de circulação, diametralmente oposto ao lar, à
residência, ao espaço personalizado. Aliás, muito bem representado na cena do o
coro de rosto em série... Também de um corpo, de uma unidade, de uma não
singularidade. O indivíduo da metrópole de uma sociedade sem relato é só, mas
junto com outros, onde a relação se dá de maneira contratual representada por
símbolos: cartão de crédito, bilhete de metrô, documentos – careteira de
motorista ou qualquer outro. Uma identidade sem pessoa. Um ser sem presença.
Aqueles que carregam, ou
melhor, aqueles que são a materialidade de uma sabedoria, de um tempo que não o
tempo da racionalidade técnica, mas de um tempo da natureza, do tempo da
criação de vidas que habitam, de distintos modos, ou vivem uma temporalidade
incerta, uma vida na força de um ritual, para esses não resta nada nesse mundo
a não ser a invisibilidade. Todavia, se não é nesse mundo que sua força vai ser
presente (isso é forte na peça) é na evocação da sua ancestralidade: no uso de
máscaras, na pintura do corpo, como se fosse uma segunda pele que habita aquela
primeira, que veremos a elevação da corporeidade a uma outra dimensão. É
possível encontrar armas durante a fuga, em meio ao próprio campo de batalha.
A peça parece ser um grito
e, por conseguinte, um combate a esses não lugares e essas formas de vida sem
pessoa. A um sistema que vive de saltos para frente num ritmo vertiginoso sem
deixar raízes, que obriga meramente a sobreviver por um dia. Uma rebelião
contra o esquecimento de onde se vem, contra a sociedade de massa que se
edifica pela colonização do imaginário e do corpo. Contra um processo
civilizatório que age sobre o corpo fazendo-o volta-se para si ao invés de
abri-lo para o mundo. Ora, não podemos esquecer que uma das formas do poder
agir sobre o sujeito é tornar o corpo sozinho, o fazer falar a língua dos
códigos que nele se inscrevem.
O trabalho parece querer
ser, por meio da sua investigação estética cultural, um terreno de contestações
sobre as condições da vida, dessas vidas distintas do modelo engendrado pela
modernidade capitalista.
A peça é um elogio à
“inconstância selvagem”: entendido aqui como a potência do sensível, da força
ritualística da sabedoria. Como um conjunto de partes heterogêneas que não se
deixam unificar. É uma recusa à modernização dos sentidos, isto é, uma recusa a
predicados, a formas fixas. Mais próximo, portanto, de um sentir, de um
emergir-se ao mundo, de um estar dentro e não diante.
A peça é um canto ao
corpo. Ao corpo como profusão do sensível. A um corpo que se inclui no
movimento das coisas e se mistura a elas com todos os seus sentidos. O trabalho
do grupo é uma ode a um estado vibrante que faz passar o indivíduo ou o
coletivo de um estado a outro. Não por acaso a peça é um cântico, uma dança,
uma viagem fora dos códigos que reduz o corpo a representações. É uma viagem em
direção a um “corpo puro” isto é, “incodificado”, possuidor de energias livres
que retorna à natureza para desempenhar o papel de permutador de código outros.
Muito próximo, aliás, a um
pensamento de um teatro da crueldade ou o teatro ritualístico de Artaud. Pois o
teatro do Incêndio é um teatro do espaço poético onde as imagens matérias são
equivalentes às imagens das palavras. O estado poético que emerge das cenas do A gente SUBMERSA é próxima uma poesia
concreta, isto é, algo é produzido objetivamente através da presença ativa em
cena. É um teatro que fala diretamente ao espírito. Trata-se, nesse sentido, da
exposição do teatro por si mesmo, como um arte no espaço e no tempo, com corpos
humanos e todos os recursos que o teatro inclui e o faz ser uma obra de arte
total.
Tudo isso só sendo possível
graças à dimensão antropofágica muito forte no grupo, haja vista a incorporação
musical que vai das matrizes populares brasileiras e africanas até o pop
estadunidense de Michael Jackson ou o funk das metrópoles. Há no grupo uma
investigação estética cultural que leva a uma certa brasilidade revolucionária.
A peça é uma “luta
dissimilação”, que enseja a criação de distancias em relação a certos modos de
vida, empregando para isso os instrumentos da diferença linguística, ritual,
histórica e de atitudes.
Artaud dizia que o
verdadeiro teatro era aquele que fazia escorrer pelas brechas da cultura
ocidental, com suas formas petrificantes, as sombras que guardam nelas as
vibrações da vida. Parece ser o que convoca a encenação de A gente SUBMERSA. Nesse sentido podemos retomar ao início, à
citação do Benjamin e pensar que uma saída para criação de uma percepção outra
esteja no espaço das artes. De uma arte engajada com a vida, com o mundo.
Enfim, a peça está em cartaz
e pode ser vista no Teatro do Incêndio que fica na Rua Treze de Maio no Bexiga.
Todo sábado às 20h e Domingo às 19h.
O trabalho é muito mais do
que tudo isso, ainda mais pela sua força artística. A minha escrita é uma
traição ao espetáculo. Vão ver e saberão porque.
Vale conferir e muito.