SIETE GRANDE HOTEL: a
sociedade das portas fechadas. Ou um poema dramático-trágico.
Não é só nos livros que
encontramos profundas reflexões sobre os efeitos da guerra e do poder político.
Também encontramos na arte uma chave para pensar a guerra e seus efeitos sobre
o território, a população de uma determinada sociedade. Basta lembrarmo-nos do
famoso quadro pintado em branco e preto de Pablo Picasso: Guernica.
Do teatro, a partir da sua
relação com a realidade, tem emergido belos trabalhos, principalmente de
artistas e grupos que tomam posições face às iniquidades sociais, que são
engajados com a vida. Parece-me ser o caso do grupo Redimunho de Investigação Teatral.
E mais ainda, seu novo espetáculo: SIETE GRANDE HOTEL: a sociedade das portas
fechadas. Um espetáculo que tem como nuvem histórica os casos dos soldados de
borracha, nome dado aos brasileiros que entre 1943/1945 foram alistados e
transportados para Amazônia com a missão de extrair borracha para os Estados
Unidos. O acordo de Washington bem como as lutas empreendidas pelos movimentos
populares a favor de moradias e terras.
Um caleidoscópio cênico. Um
trabalho repleto de imagens e simbolismo, emergindo daí a teatralidade, isto é,
a emancipação do teatro ao texto, sem com isso diminuir a força da narrativa,
mas pelo contrário, criando a espacialidade adequada para sua execução. Ao
mesmo tempo um trabalho de estilo tardio: algo que estar no presente mais
estranhamente apartado dele, onde um presente brutal é substituído por um outro
tempo. Uma espécie de inconciliabilidade, de plano de ação para falar do
presente sem necessariamente se submeter a um certo modismo cênico em vigor no
presente.
O trabalho pode ser pensado
como um híbrido dos diversos gêneros presente no teatro enquanto forma bem como
a partir da vizinhança com outras linguagens. Haja vista as instalações dos
quartos-quadros. O que parece dá mais força ao trabalho. Ao estrutura-lo em um prólogo,
sete quadros-quartos-instalações e um epílogo, muito próximo, aliás, ao
expediente épico do Brecht, no sentido de cada cena-quadro-quarto, valer por si
e pela potencia da narrativa. Sem contar os entres de uma cena para outra que a
encenação encontrou, por exemplo, a personagem da empregada e o deslocamento
dela pelas cenas. Criando camadas de temporalidades. Não bastassem tais
procedimentos, a força do drama (no sentido de um acontecimento no presente,
numa representação pela ação) humaniza os personagens sem perder a dimensão que
produz a desumanização, quer dizer, a guerra e a política destituída de seu
caráter de relação com a pólis (o viver-junto) ao mesmo tempo em que se resume
a uma preocupação econômica. Todavia, se o dramático na sua força de
acontecimento violento, de descrição de uma situação se desenvolve, não se pode
falar o mesmo em relação à sua forma, ou seja, o drama sofre um golpe ao ser
substituído por quadros. A lógica clássica da fábula, fundada na progressão constante
da ação até a resolução final do conflito se ver abalada. Um trabalho
contaminado de gêneros, estéticas e culturas, que o aproxima ao um poema
dramático pela sua força de diluição das fronteiras acimas citadas e ao mesmo
tempo trágico pela dimensão cíclica que ele traz da política enquanto conflito
permanente. Repleto de violência, de perda de conexão, de
homens reduzidos ao silencio, mas também de contestação.
A guerra ajuda Foucault a
analisar as relações de poder. Para o pensador francês a análise do poder tem
que ser feita numa base de relação de força, de combate, de enfrentamento, de
guerra. O poder sendo, portanto, a guerra continuada por outros meios. O aforismo invertido nos ajuda a pensar
acerca do modo como certo poder político se estabelece numa sociedade como
nossa, isto é, como ele ancora uma certa relação de força estabelecida em
momentos históricos. Instituindo privilégios para alguns em detrimento de
outros. E mais: escancarando como é
ilusório pensar que o poder político para a guerra e constitui a paz
neutralizando o desequilíbrio produzido pela guerra. O que o poder político tem como função é
“reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma guerra silenciosa,
e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem,
até nos corpos uns dos outros”.
Nesse sentido, a política
como a guerra continuada, é a “sanção e a recondução do desiquilíbrio, das
forças manifestas na guerra”. A guerra da mesma maneira que a política como a
guerra continuada por outros meios produz a classe dos despossuídos: sejam eles
escravos, soldados perdidos numa intensa desterritorialização geográfica quanto
psíquica. Produzem vidas precárias, destituídas elas mesmas da qualificação de
vidas. E, portanto, lesada de um estatuto de vida política. Produz mecanismos e
parasitas políticos que vivem do trabalho alheio.
Entretanto, como define
Foucault, a política é relação de poder, ela é então combate, enfrentamento. Daí pode
surgir resistências. Movimentos insurgentes descortinando essa falsa paz.
No interior desse grande
hotel estão sendo gestados, e é isso que observaremos ao vivenciar o
espetáculo, um começo, um recomeço de uma luta coletiva, poderíamos dizer de
uma “hipótese comunista”, não como ideia reguladora a priori, mas um movimento
necessário de reação a um conjunto de antagonismos sociais.
A primeira cena, ainda no
espaço externo, quer dizer, na rua, é um canto a uma ação coletiva. A um
enfrentamento. A cena seguinte é uma enunciação do que virá ao mesmo tempo em
que é a voz totalizadora do sindico. Ele, a propósito, é o único que tem o
figurino completo, podendo ser pensado como uma alegoria do patrão. Enquanto em todos os outros personagens faltam
alguma peça de roupa. Seres incompletos pela força da desigualdade. O povo num
regime totalitário, o povo numa democracia oligárquica. Para não falar no
sistema econômico em vigor.
Todo o trabalhado não pode
ser pensado fora do registro dos atores e atrizes. De como essas alegorias são
atualizadas por meio da criação sensível de cada um e cada uma. Uns buscando um
registro mais próximo de uma composição do teatro do absurdo, outros num
registro mais corporal, violento e poético. Não poder ser pensada fora do
registro musical. Que, aliás, tem na musicalidade latina americana o seu
referencial. O seu canto por reconhecimento. A luta. Não pode ser pensado fora
do registro de orquestração da encenação bem como da poética do texto. É um
espetáculo onde as partes e todo se mesclam.
Não analisarei cena por
cena, até gostaria, mas isso significaria muitas páginas, além da perda do ser
afetado pela vivência primeira de cada cena.
O que, talvez, seja
interessante pensar através do espetáculo é o que está sendo formado e imaginado no
interior desse grande hotel, dessa sociedade de portas fechadas. Davi Kopenawa
nos alerta sobre “a queda do céu” ao pensar sobre os riscos que a sociedade
organizada por esse sistema político corre ao tornar o povo em povo-mercadoria.
Podemos utilizar a expressão do Davi também, talvez, como um vislumbre de um
horizonte da queda daqueles que se assentam sobre nossas cabeças como está
representado na peça.
O espetáculo é a uma força
cênica e é também um canto para levantar nossos fardos e seguirmos. O
espetáculo acaba nos apresentando a rua. Onde tudo começou. O que nos revela o
caráter cíclico da política, da guerra. Da ordem e da desordem dos tempos. Dos
pesos dos tempos. Estando aí o caráter trágico da vida. Esse eterno viver em
conflito. Essa eterna certeza da instabilidade das coisas.
Enfim, um trabalho para ser
visto, vivido e conversado.